COISAS QUE EU VI, OUVI OU VIVI: COISAS DO INTERIOR, FAZENDA UMBUZEIRO (I) –
O PRINCÍPIO DA FAZENDA UMBUZEIRO
Quem não conhece as terras da Serra Verde, que ocupa áreas dos Municípios de João Câmara, Pureza e Parazinho, não tem ideia sobre uma região das mais bem dotadas do Estado.
Excelente solo, com uma precipitação pluviométrica na ordem de 800mm/ano, sem contar com o orvalho que ocorre durante as noites, mesmo no período do verão, estimado em 700mm/ano.
Essa é uma particularidade interessante. Caso se coloque, por exemplo, uma toalha para secar ao relento, durante a noite, ela estará mais molhada ainda, ao amanhecer.
Adquiri uma fazenda no Município de Pureza, junto às terras da Fazenda Zabelê, também conhecida como Portela.
Como diziam por lá: o terreno estava como que “abadonado”, “sem leis”, e eu tinha que chegar e “tomar de conta”.
Contratei “Zé de Laura e Otavio”, que seriam responsáveis pela “organização” da fazenda, e a dupla logo passou a ser chamada, pelo pessoal local, como os capangas do Dr. Antonio Ferreira.
Ríamos com a situação.
Os dois, foram responsáveis por algumas “passagens”, que nada tiveram de beligerantes, e serão vistas depois.
O PROPRIETÁRIO ANTERIOR
João Araújo, o proprietário anterior, era um homem fisicamente muito forte, e nos “bons tempos”, tinha o controle de tudo o que acontecia nas suas terras, que administrava com “mão de ferro”.
OUVI dizer que, quando mais jovem, ao ser desobedecido, amarrava o cara pelo punho e dava um nó com a outra ponta no seu próprio punho. Com a mão livre, chicoteava o cristão até não querer mais.
Outra das suas características era possuir várias mulheres, com as quais, tinha muitos filhos.
Para não dar uma informação errada, consegui o número do celular de Batista, um dos seus filhos e OUVI dele o seguinte: quando resolveu vender a fazenda, João Araújo tinha 8 mulheres e 49 filhos.
Ao morrer, em 2002, durante o velório, fizeram um levantamento estatístico e contaram 86 netos e 26 bisnetos.
Como todas as suas mulheres moravam nas terras do Umbuzeiro, e, cada uma em seu próprio “rancho”, podia-se dizer, que eram 08 mine-fazendas dentro da fazenda.
Eu tinha o prazer de encontrar, umbu, ciriguela, jaca, goiaba, cajá, limão, além dos sítios de cajueiros, nos diversos cercados, onde plantei o capim braquiária, para a criação de gado.
Importante dizer, que todas as famílias conviviam em harmonia, e era comum, que cada uma delas auxiliasse no parto e nas atividades da casa da parturiente do momento.
UMA DAS FACETAS DE JOÃO
Já conhecia João Araújo desde os tempos que possui uma fazenda no Riacho Seco, na década de 1970.
Ele passava num caminhão, lotado de gente das suas famílias, indo para a feira de João Câmara, levando mulheres e filhos, para as compras da semana.
Chegando na feira ele não comprava “os mantimentos, roupas e sapatos” por unidades e pares. Negociava as “rumas” que eram feitas no chão da feira.
As sandálias japonesas, por exemplo, ele comprava em sacos, e os vendedores, já conhecendo a figura, vendiam, nem sempre, os pares certos, uma vez que ele não ia fazer a conferência. O fato é que sobravam sandálias sem uso, e, durante os anos que passei por lá, encontravam-se “japonesas” em tudo o que era canto, pois não se deterioram com facilidade.
Ao voltar da feira para a fazenda, numa pequena casa, que ele chamava de armazém, colocava as comidas compradas e cada uma das mulheres pegava a sua parte.
Um detalhe: tinha que dar para todas. Se faltasse para a última, mandava voltar tudo e invertia a coleta. A última, para quem tinha faltado a feira, passava a pegar a sua parte em primeiro lugar.
O SISTEMA DE JOÃO ARAÚJO
Ele dizia, que lá, tudo era controlado por ele. Até o amor.
Suas palavras: “dotô Antonio”, quando eu era “homi”, ia na casa de uma e “dava o meu recado”. Quando ia voltando pra casa, outra estava me “intocaiando” e eu ia pra casa dela, para que também ficasse “sastifeita”.
Isso, obviamente, se referindo ao sexo.
De alguma forma, João Araújo se apropriava da frase: “O ESTADO SOU EU”, atribuída ao Rei Luís XIV, o monarca absolutista, e se constituía na sua versão matuta.
No Umbuzeiro reinava o sistema capitalista de João Araújo, onde tudo era centralizado na sua figura. Porém, quando comprei a fazenda, João e o seu sistema, já não eram os mesmos.
Como o tempo não perdoa, as condições de virilidade se acabaram, os problemas financeiros cresceram e o modelo econômico e administrativo de João Araújo, se esgotou.
A “mais valia”, que é um conceito da sociologia, criado por Karl Marx, na economia política se baseia na exploração do sistema capitalista, onde o trabalho, se transformado em mercadoria, parte não é paga, com o intuito do lucro.
Portanto, para Marx – que nunca trabalhou na vida – o trabalho é que gera riqueza, e o patrão fica com a maior parte.
Então, a “mais valia” seria a diferença entre o que o trabalhador produz e o que ele recebe. Assim, os trabalhadores, acabam recebendo um valor inferior ao trabalho realizado.
Os filhos de João Araújo, trabalhavam, mas não eram recompensados pelo trabalho realizado, e, muito menos, em dinheiro. Como pagamento, eles recebiam apenas os meios de sobrevivência.
Portanto, constituíam a base de exploração do sistema capitalista de João.
Passado o tempo, já crescidos, os meninos precisavam de outras coisas, além da alimentação, chinelos e roupas. Começaram a beber, fumar, e ir aos cabarés, e, passaram a furtar coisas da própria fazenda, para cobrir as suas necessidades.
Enfim, os meios de produção ficaram escassos, não se efetivava o devido controle, e então, o Estado de João Araújo, “murchou”.
Daí, ter que vender a fazenda.
A FESTA DE INAUGURAÇÃO
Depois de uns dias de três ou quatro meses, como eu gosto de “juntar gente”, resolvi fazer um forró para a inauguração.
Era tempo de São João, e eu contratei uma turma de “tocadores”.
Mandei divulgar que o Umbuzeiro de Antonio Ferreira convidava o pessoal da localidade, para uma festa de São João.
Não divulguei, porem seria tudo de graça: forró, comida e bebida, coisa difícil de acreditar, mas de previsível repercussão positiva.
O pessoal que já conheci nos primeiros trabalhos da fazenda, falou: é melhor o senhor chamar a polícia para dar proteção, porque o povo daqui gosta de fazer confusão. Gosta de “acabar festa”.
Então eu falei: se houver confusão, a gente resolve:
E assim foi feito. Sem polícia.
Como não tinha energia elétrica, o terreiro e o forró, eram iluminados com lâmpadas a gás de bujão.
Forró em atividade, todo mundo dançando, alegria total.
Eis que alguém derruba uma das lâmpadas de gás, e a explosão dá a impressão de um tiro.
Aí amigo, foi gente correndo pra todo lado.
E eu, gritando…
CALMA GENTE. CALMA GENTE. FOI SÓ O PIPOCO DA LAMPADA!!!!!
Aos poucos, voltou tudo ao normal e a festa continuou até o amanhecer.
Depois dessa, na região, quando alguém falava alguma coisa sobre confusão em festa, o povo dizia:
Confusão, só em outro canto, no Umbuzeiro do “dotô” Antonio Ferreira, não.
A “POLIÇA”
Com a repercussão do São João do Umbuzeiro, o Delegado me procurou.
Dizendo que a ausência da polícia tornava a festa perigosa, recomendava que eu não deixasse de lhe chamar, pois estava lá para essas coisas. Ou seja, oferecer segurança à população.
Definimos, então, o “modus operandi”.
Da porteira pra dentro, a gente resolvia e se houvesse necessidade lhe recorreria. Para as festas, o convite seria de caráter social.
Quando chegava um novo delegado, eu mandava lhe convidar para jantar, e então acordávamos o funcionamento das estruturas informais de “controle social”, sem esquecer um carneiro gordo para o aniversário do sargento, outro para o aniversário da “patrôa” ou qualquer comemoração da família.
Era assim que as coisas funcionavam, e quem conhece as COISAS DO INTERIOR, sabe.
Antônio José Ferreira de Melo – Economista, [email protected]