Mas, no plano político, os últimos quatro anos, sob a presidência de Jair Bolsonaro (PL), representaram um ponto fora da curva nesses laços: foram marcados por animosidade, com direito, inclusive, a troca pública de farpas, como o episódio que envolveu Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, e o então embaixador chinês em Brasília, Yang Wanmig (relembre no fim desta reportagem).
Apesar disso, o atrito não esfriou o comércio entre os dois países que, ao que tudo indica, pode bater novo recorde em 2022.
Como está, então, a relação entre o Brasil e a China e o que deve mudar neste terceiro mandato de Lula?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem acreditar que, se por um lado, não deve haver grandes mudanças no comércio bilateral entre os dois países, por outro, esperam uma reaproximação no campo político, além de um enfoque maior em setores como sustentabilidade e meio ambiente, uma agenda já definida como prioritária pelo novo governo brasileiro.
Um bom sinal nesse sentido, na opinião deles, veio com o anúncio de que Lula vai visitar a China, além de Estados Unidos e Argentina — os três países são, atualmente, os principais parceiros comerciais do Brasil.
Os especialistas alertam, contudo, que o novo governo petista deveria estabelecer bases para uma relação “mais sofisticada” com a China dentro do próprio agronegócio, bem como reduzir sua dependência da exportação de commodities (matérias-primas como petróleo e soja), por meio de produtos de maior valor agregado. Parcerias em setores estratégicos, como energia e tecnologia, têm que ser aprimoradas e intensificadas, acrescentam.
“A relação política com a China esfriou muito no governo Bolsonaro. Mas ainda assim a parte comercial em si não foi particularmente prejudicada, tendo inclusive crescido no ano passado (até novembro; os dados de dezembro ainda não foram divulgados). Acho curioso que, apesar desse desinteresse — e até mesmo certa animosidade — de parte do governo Bolsonaro, a relação com a China fluiu muito bem em termos práticos na área econômica. Os investimentos aumentaram, o comércio bateu recorde atrás de recorde, abriram novos mercados para produtos agrícolas na China”, explica à BBC News Brasil Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
“Então, no fim das contas, acho que todo esse suposto afastamento da China foi uma coisa “teatral” de uma minoria do governo passado. Até porque existem setores poderosos absolutamente interessados na manutenção de boas relações com o país, com é o caso do agronegócio e da mineração. Até mesmo parte da indústria (aquela que compra insumos importados) busca intensificar as relações com a China”, acrescenta.
Cariello lembra que, a despeito das tensões políticas entre Brasil e China, com declarações repetidas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e pessoas do seu entorno contra o gigante asiático durante seu governo, o Ministério da Agricultura criou um “Núcleo China”, uma unidade especial que cuidava das relações com aquele país, a pedido da ex-ministra Teresa Cristina e ligada diretamente a seu gabinete.
De fato, segundo documento intitulado “Investimentos chineses no Brasil: histórico, tendências e desafios globais (2007-2020)”, do CEBC, o mais abrangente já realizado sobre o tema, as ações concretas do governo brasileiro indicaram “mais continuidade do que ruptura na relação bilateral” com a China.
Entre 2007 e 2021, a China investiu no Brasil US$ 70 bilhões — só em 2021, os investimentos totalizaram US$ 5,9 bilhões, o maior valor desde 2017.
E, no ano passado até novembro (os dados de dezembro ainda não foram divulgados), a corrente de comércio bilateral já aponta novo recorde: US$ 139,4 bilhões, cifra que supera a marca de US$ 135,4 bilhões registrada em todo o ano de 2021.
Vale lembrar também que o maior superávit (diferença entre exportações e importações) do Brasil com um só país é com a China — isso significa que mais recursos estão entrando no país, melhorando a economia e gerando mais renda, do que saindo. E também representa algo pouco comum, uma vez que geralmente é a China quem tem superávit com seus parceiros (ou seja, vende mais do que compra).
Larissa Wachholz, que chefiou o ‘Núcleo China’ do Ministério da Agricultura sob a gestão Bolsonaro e é atualmente senior fellow do Núcleo Ásia do CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), um think tank de relações internacionais, diz esperar uma relação “muito positiva” do novo governo brasileiro com a China, mas ressalva que ela ainda não é explorada em seu potencial.
“As interações pessoais são muito importantes na cultura asiática e isso se aplica à China. Agora, isso voltou a ser possível com o governo chinês suspendendo as medidas mais severas contra a covid. O Brasil segue sendo um parceiro importante para a segurança alimentar e energética da China, mas em termos de estratégia de desenvolvimento, precisamos ir mais longe”, diz.
Wachholz lembra que os três principais produtos exportados pelo Brasil à China ainda são petróleo, minério de ferro e soja. Mas apesar de o Brasil, como tradicional exportador de commodities (matérias-primas), ter se beneficiado do acelerado crescimento econômico chinês ao longo dos anos, “isso não é suficiente”, em sua visão.
“Tem sido muito benéfica para nós (exportação de commodities para a China), mas acho que não é suficiente. Acho que deveríamos almejar ir além. O Brasil tem uma ambição correta, a meu ver, de ser uma economia diversificada. Poderíamos fazer uso das nossas competências e da nossa grande capacidade de exportação, de recursos naturais, de commodities para alcançar o nosso objetivo de sermos uma economia diversificada. A China pode ser um parceiro excelente para que esse objetivo seja alcançado”, opina.
Ela assinala que, apesar de ser a segunda maior economia do mundo, a China ainda investe muito pouco do seu PIB (Produto Interno Bruto, ou soma de bens e serviços de um país) no exterior, ao contrário do Japão (acima de 60%), Estados Unidos (40%) e União Europeia (30%).
“É muito pouco para a segunda maior economia do mundo. Tem muito potencial de crescimento e o Brasil pode ser um grande receptor desses investimentos. E esses investimentos podem auxiliar o Brasil nesse projeto de desenvolvimento e de ter uma economia diversificada”.
“Acho que essa é a grande reflexão. Aonde a gente quer chegar? Quais perfis de cadeias industriais a gente quer atrair? A China pode ser parte disso. Por isso digo que deveríamos almejar ir além”.
“São investimentos que podem gerar emprego e renda no Brasil. Que não vão apenas abastecer o mercado nacional brasileiro, mas que podem tornar o Brasil um polo exportador desses produtos na América do Sul”, acrescenta.
Tanto Wachholz e Turiello fazem um alerta: na opinião deles, a China já deu sinais de que não quer depender de poucos fornecedores para garantir sua segurança alimentar e energética e, por isso, vem buscando ampliar o escopo de países de quem compra matérias-primas — nesse sentido, o Brasil pode acabar “ficando para trás” no “longo prazo”.
“A China tem a pretensão de aumentar seu potencial agrícola nacionalmente. Isso é difícil. Ela já trabalha com a produção agrícola no limite. Mesmo que ela passe a produzir mais, sua produção não dá conta da demanda”, ressalva Wachholz.
É o caso da soja. Hoje, a China já produz o grão localmente. Mas só 16 milhões de toneladas das 100 milhões de que precisa todos os anos.
“Para produzir muito mais do que isso, a China teria que produzir menos arroz, trigo ou milho, que também são commodities importantes para a sua segurança alimentar. Mas qual é o risco? A China se sente encorajada de desenvolver outros fornecedores no mundo, que possam ajudar a atender sua demanda, como países africanos”, acrescenta Wachholz.
Cariello, do CEBC, concorda. “Não temos como mais nos pautar só nessa ideia vender a commodity bruta para a China, produtos primários. Por que a própria China, no longo prazo, está querendo aumentar sua autossuficiência. Os chineses querem diminuir a dependência deles em relação à importação de produtos agrícolas, por exemplo”, diz.
“Acho que o novo governo Lula tem uma grande chance de estabelecer bases para uma relação mais sofisticada com a China dentro do próprio agronegócio. Mas os grandes parceiros da China na área agrícola, como é o caso do Brasil, precisam explorar mercados diferentes dentro da China com maior valor agregado, com uma cesta de produtos maior e ser menos dependente de poucos produtos”.
Segundo o especialista, Lula também terá que lidar com uma realidade diferente da de seus dois primeiros mandatos.
“O contexto de Lula 1 e Lula 2 era de muita euforia com a China. Empresas chinesas faziam grandes investimentos no exterior e houve um maior fluxo de comércio, sobretudo na área das commodities”, lembra.
Um desses desafios, segundo Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil em Pequim (China) e em Washington (Estados Unidos), é a postura que o Brasil vai adotar diante da guerra comercial e diplomática travada entre China e Estados Unidos.
Em meio a um processo que descreve como “reconstrução” da política externa brasileira após um “imenso retrocesso” durate o governo Bolsonaro, Abdenur diz que o Brasil vai precisar manter uma posição de “equidistância, equilíbrio” nesse contexto.
“Não podemos nos alinhar com a China, claro, nem tampouco os Estados Unidos, como fez de maneira ultrajante e vexatória Bolsonaro sob o governo Trump, em que ele se submeteu humildemente aos caprichos, às políticas, aos preconceitos, às ideias reaciónarias do agora ex-presidente americano”.
Diretamente envolvido no lançamento da Parceria Estratégica Brasil-China, que lançou as bases para o fortalecimento das relações econômicas entre os dois países, em sua época como embaixador em Pequim, o diplomata aposentado e atual conselheiro do CEBRI diz ser “perfeitamente possível votar contra um país no plano multilateral e preservar com ele uma boa relação bilateral”.
“O Brasil sempre votou contra os Estados Unidos nas questões envolvendo Israel e Palestina e na censura ao injusto embargo econômico contra Cuba”, exemplifica.
Seria, portanto, um abandono do alinhamento automático aos EUA e um retorno à tradicional postura de neutralidade por meio do diálogo que sempre pautou a política externa brasileira.
As relações entre Brasil e China ficaram estremecidas no plano político no governo anterior. Mesmo antes de ser eleito presidente, Bolsonaro fez críticas à China, ainda durante sua campanha. Os ataques também vieram de pessoas próximas ao presidente, como seus filhos.
Em fevereiro de 2019, Bolsonaro visitou Taiwan, irritando os chineses — o país é considerado uma “província rebelde” por Pequim.
Em novembro de 2020, Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSL-SP) e filho do ex-presidente, publicou (e depois apagou) mensagem dizendo que o governo brasileiro apoiava uma “aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China”.
Em comunicado, a embaixada chinesa em Brasília falou sobre o governo brasileiro “arcar com consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”.
Em maio de 2021, Bolsonaro insinuou que a pandemia de coronavírus seria parte de uma “guerra biológica” chinesa e que “os militares sabem disso”. Logo depois, o ex-presidente afirmou que o Brasil é “muito importante” para a China e negou ter citado o país asiático em declaração sobre a origem do novo coronavírus.
Uma semana antes, seu então ministro da Economia, Paulo Guedes, havia dito numa reunião que “o chinês inventou o vírus”. Posteriormente, pediu desculpas.