CONTRADITÓRIO IMAGINADO –

Charles Dickens (1812-1870) é autor de vastíssima obra, sobretudo em forma de romances: “The Pickwick Papers”, “Oliver Twist”, “Nicholas Nickleby”, “The Old Curiosity Shop”, “Christmas Carol”, “David Copperfield”, “Bleak House”, “Hard Times”, “Little Dorrit”, “A tale of Two Cities” e “Great Expectations” são alguns dos seus títulos em inglês. Acredito que quase todos esses romances já foram traduzidos para o nosso português. Isso sem falar nas adaptações para o cinema e a TV. Dickens merece a fama que tem.

Dos romances de Dickens, o mais “jurídico” deles é sem dúvida “Bleak House”, de 1853 (embora serializado na imprensa, como de estilo à época, entre 1952 e 1953). Hoje é facilmente achado em edições baratas paperback. Eu mesmo possuo duas, uma da Penguin Books (de 2003) e outra da Wordsworth Editions (2001). “A casa soturna”, esse é o título em português, também possui várias edições entre nós. Mesmo que não tão badalado quanto outros títulos de Dickens, “Bleak House” é considerado uma obra-prima.

Na verdade, embora a questão de gênero na literatura seja algo polêmico, segundo minha classificação da coisa, “Bleak House” é um “romance jurídico” na “precisão integral do termo”, como diria (e disse certa vez nos seus “Sertões”) o nosso Euclides da Cunha (1866-1909).

Tudo gira em torno de um bizarro caso de herança, denominado “Jarndyce and Jarndyce”, que é julgado nas extintas Chancery Courts, sob o sistema da Equity. O pano de fundo da trama é o moroso desenrolar do caso e a vida nas cortes de justiça de Chancery Lane. Inúmeros eventos afetam as personagens – Esther Summerson, a heroína, Dr. Woodcourt, Richard Carstone e Ada Clare, entre outras –, cujas vidas restam, em maior ou menor grau, determinadas pelo vai e vem de um arbitrário sistema judicial. E, absurdamente, ao cabo do processo, a herança acaba consumida pelas despesas com os advogados e as custas legais.

Imaginem os aspectos jurídicos que podem, interdisciplinarmente, ser analisados e estudados a partir desse romance de Dickens. Inúmeros, eu garanto. Mas eu hoje vou destacar apenas um deles, que me foi outro dia sugerido pela leitura de “An Introduction Guide to English Literature” (Longman York Press, 1985), de Martin Stephen: a existência de dois narradores no romance. E, portanto, a existência de mais de uma “história/estória/versão” dos acontecimentos. Segundo consta do referido Guia, “há a narração em primeira pessoa por Esther Summerson, uma garota envolvida pelas consequências dos grandes eventos da trama, e um onisciente narrador, que dá detalhes de uma estória aparentemente diferente, mas que vai progressivamente se parecendo com a narrativa de Esther à medida que o romance avança”.

Para mim, o fato de o romance ter mais de um narrador vai além da mera opção literária. Afinal, em um processo não temos exatamente isso? Mais de uma versão do acontecido. As versões do autor, do réu, das testemunhas, condensadas/recriadas pelo supostamente onisciente juiz, depois avalizadas pelo tribunal e por aí vai. E, para os fins da filosofia e da teoria geral do direito e do processo, esse contraditório não é um dos pilares do devido processo legal?

Isso diz muito de Dickens. Ele tinha formação jurídica. Foi assistente na advocacia, foi um clerck (um tipo de escrivão na Inglaterra) e repórter judiciário. Dickens era preciso no direito. Seja por experiência na área, por labor de pesquisa ou por genialidade inata. Ou pela mistura disso tudo. O fato é que acho que ele quis mesmo criar uma espécie de contraditório no seu “romance jurídico”. Com limites, claro, para não ter inconsistências intransponíveis no seu enredo/processo. O non liquet é indesejado tanto no direito como na literatura.

Bom, alguém poderá dizer que eu estou viajando e que o escritor não pensou em nada disso. Pode até ser. Mas então ponham esta crônica inteiramente na conta/imaginação deste fã de Charles Dickens.

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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