CORAÇÃO MATERNO –
Estamos no mês dedicado às mães e gostaria de falar sobre a minha.
Naqueles anos 1940 de muitas carências e notícias da guerra, o jovem Miguel, aos 19 anos ajudava o pai na tarefa de fornecer água, lenha e outras necessidades ao Orfanato Padre João Maria, instalado naquela Extremoz atrasada e pobre. Olga, 18 anos, neta de portugueses, corpo e mente firmes, notável energia moral e intelectual forjada na rígida instrução e na disciplina da instituição onde, desde os 8 anos de idade, levada pela mãe viúva, viveu como interna, na companhia de três irmãs.
Há menos de um ano, as visitas de Miguel o levaram a conhecer a jovem séria, determinada, porém sensível, que começara a ver no rapaz de fala mansa e educada a válvula por onde sonhava escapar do rigor do internato. Alimentado por encontros fortuitos, restritos, casuais, o namoro vingou e um casamento religioso foi realizado ali mesmo, na igreja do Orfanato, sob as bênçãos das diretoras e a restrição de parte da família de Miguel. Era o ano de 1944. Com o matrimônio e a saída do Orfanato, começaram sua vida em comum, realizando a união civil em 1945.
Com a sua morte, pouco antes dos 43 anos de idade, minha mãe encerrava uma vida que foi pouco vivida e muito suportada, porque dedicara boa ou maior parte dessa existência a criar seis filhos e a cuidar do marido. A vivência no internato influenciou o seu comportamento de atitudes duras e firmes, movidas por uma inteligência singular. Lembro-me dela, ainda jovem, cercada de moças quase meninas, trocando fotos de artistas e letras das canções copiadas num caderno, escritas com capricho, a letra clara, limpa, bonita. Uma caligrafia disputada pela vizinhança que, não raro, lhe trazia encomendas de cartas para os parentes. Elogiavam a sua escrita, enquanto exploravam os seus dotes exercidos nessas tarefas de amizade.
Lia, na medida do possível, as revistas femininas de moda, os gibis que comprava para nós e os vários livros que lhe chegavam às mãos por empréstimo, principalmente. Tinha grandes habilidades domésticas, resultado da vida reclusa, quando adquiriu as prendas. Bordava como poucas e era mestra nas pequenas tarefas de costura. Não produzia roupas inteiras, mas era irrepreensível nos trabalhos de mão.
Gostava muito de cinema e rádio, prazer insuperável, na época. Via, mais ou menos regularmente, os filmes do momento, principalmente os românticos, ou “de amor”, como eram chamados e como convinha à maioria das moças de então. Contava-nos com prazer as cenas dos filmes que tinha assistido. De olhos arregalados, ouvíamos as peripécias de Burt Lancaster em O Pirata Sangrento, as facetas do temperamento de Marlon Brando em Desirè, o Amor de Napoleão, a beleza do amor de Liz Taylor e Van Johnson em A Última vez que vi Paris, William Holden e Jennifer Jones em Suplício de uma Saudade, Anthony Quinn e Gina Lollobrigida em O Corcunda de Notre-Dame, Charles Chaplin em Luzes da Ribalta. Emocionava-se com as novelas de rádio, que escutava avidamente todas as noites, concentrada ao “pé do rádio”. Em companhia de meu pai, ia um domingo ou outro, aos programas de auditório da Rádio Poti.
Éramos pobres, mas vivíamos esse mundo mágico e puro onde aprendemos a saborear as nossas fantasias de criança, embalados pela emoção dela, nossa líder, nossa referência, nosso esteio, mestra e mãe, amiga e irmã, disciplinadora e tolerante; uma mente singular, especial; aberta e responsável; doce e dura; a silhueta magra ostentando a potente mão da disciplina, ocupada em dotar cada filho de resistência moral e intelectual, talvez como principal objetivo da sua vida.
Alberto da Hora – escritor, músico, cantor e regente de corais