CRIMES ECONÔMICOS V –
No último artigo que escrevi aqui, levando em consideração a expansão da legislação relativa aos crimes econômicos e à corrupção (especialmente a partir da década de 1990) e a sofisticação cada vez maior na prática desses delitos, defendi o papel colaborativo que devem ter a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal e as chamadas agências de “controle e inteligência” (a Receita Federal, o COAF, o TCU, a CGU e por aí vai) na prevenção e na repressão a esse tipo de criminalidade, hoje mais organizada do que nunca.
Mas de que recursos fazem uso essas instituições – por exemplo, a Polícia Federal e, sobretudo, o Ministério Público Federal, instituição da qual faço parte e conheço melhor – e os seus agentes, para fins de investigação e persecução dessa criminalidade?
Antes de mais nada, eles fazem uso de uma legislação abundante. Temos uma Constituição Federal com inúmeros dispositivos orientados ao combate à criminalidade organizada e à corrupção, tais como a própria previsão dos órgãos/agências incumbidos desse mister (Poder Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, polícias judiciárias etc.), as garantias dos agentes envolvidos nessa tarefa (vide as garantias dos magistrados e dos membros do MP) e os inúmeros instrumentos elencados para tanto (ação penal, inquérito policial, ação de improbidade, inquérito civil público etc.). E temos, também, a nossa legislação infraconstitucional vocacionada a esse combate: a Lei nº 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional), a Lei nº 8.078/90 (crimes contra as relações de consumo), a Lei nº 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária e contra a ordem econômica), a Lei nº 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica), a Lei nº 9.613/98 (crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) e a Lei nº 10.303/2001 (crimes contra o mercado de capitais), entre outros diplomas legais, que se somam aos nossos Código Penal e Código de Processo Penal.
Ademais, de um ponto de vista mais prático – que pretendo salientar aqui –, eles fazem uso de um cabedal de “novos” instrumentos de investigação e produção de prova, bem mais eficientes no combate à criminalidade econômica organizada que aqueles previstos no Código de Processo Penal. De há muito tempo, até porque constantes de um Decreto-Lei de 1941, esses instrumentos do CPP – o exame de corpo de delito e as perícias em geral (arts. 158 a 184), interrogatório do acusado (arts. 185 a 196), a sua confissão (arts. 197 a 200), as declarações do ofendido (art. 201), os depoimentos das testemunhas (arts. 202 a 225), o reconhecimento de pessoas e coisas (arts. 226 a 228), a acareação (arts. 229 e 230), a simples prova documental (arts. 231 a 238), a busca e a apreensão (arts. 240 a 250), os denominados “indícios” (art. 239) e por aí vai – se mostraram insuficientes para o combate a esse tipo de criminalidade.
Esses novos instrumentos estão sobretudo previstos na Lei nº 12.850/2013, que, entre outras coisas, define o que é organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção da prova em infrações penais relacionadas a esse tipo de associação. Dispõe o artigo 3º da referida lei: “Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I – colaboração premiada; II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; III – ação controlada; IV – acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; V – interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica; VI – afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11; VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal”.
Sobre cada um desses instrumentos há muito o que falar. São assuntos para uma dissertação de mestrado, para uma tese de doutorado e, fora da academia, para um bom livro. É o caso, por exemplo, da merecidamente badalada “colaboração premiada” (inciso I do citado art. 3º), tema da dissertação de mestrado da nossa conterrânea Cibele Benevides Guedes da Fonseca, depois transformada em livro, com o título “Colaboração premiada” (Del Rey Livraria Editora, 2017). Sem espaço aqui para um maior aprofundamento no tema, recomendo sua leitura. Sem dúvida.
Sobre cada um deles há também muito o que elogiar. É o caso, por exemplo, do “afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica” (inciso VI do mesmo art. 3º). Por exemplo, só tenho elogios à permissão dada à Receita Federal do Brasil, com base na Lei Complementar nº 105/2001, de acessar dados bancários dos contribuintes, sem necessidade de autorização judicial, para fins, lícitos e bastante republicanos, de averiguação de irregularidades/ilegalidades tributárias. Finalmente considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (RE 601314 e ADIs 2386, 2397, 2390 e 2859), faz parte de um esforço, tão necessário em nosso país, de combate à criminalidade, incluindo aquela de “colarinho branco”. Sua eficácia já foi mais que comprovada, especialmente no combate à corrupção, à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro. É o caso, também, da “interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica” (inciso V do art. 3º). Qual persecução de organização criminosa hoje prescinde desse instrumento de investigação e produção de prova? Em muitos casos, ela chega a ser a prova “número um”. E é sem dúvida o caso da “cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal” (inciso VIII e último do mesmo art. 3º). Sobre essa cooperação, aliás, eu já falei no artigo anterior.
Entretanto, se há muito o que falar e elogiar – e, infelizmente, não temos espaço aqui para tanto –, há também há muito o que criticar. Tanto no que toca ao mau uso desses novos instrumentos de investigação e produção de prova, como no que atine ao combate à criminalidade econômica e à corrupção como um todo. É o outro lado da moeda, sobre o qual, até por honestidade intelectual, eu escreverei, nem que seja um pouquinho, no artigo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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