Viver nesta parte do mundo onde eu vivo é algo aprazível e incomum. A felicidade e o infortúnio convivem com a monotonia das horas. A primavera, o verão, o outono e o inverno, avassaladores em suas peculiares características, parecem direcionar e atrapalhar um tanto o tempo. Na ausência das estações “comme il faut”, sempre e só, o sol e a chuva se inserem ao calor senegalesco.
A miscigenação racial dá um tom étnico diferente ao ambiente. Entretanto, similitudes culturais imperam. Pareceria que a África Subsaariana é aqui. Herança um tanto atávica, perpetuada por razões ancestrais, não muito bem entendida ou assimilada. Onde ruínas são deixadas como ruínas. Ruas, avenidas, travessas, pontes, becos. Praias, rios e lagos. Nenhum esforço empreendido em contrário. Sobra o sentimento incômodo dos testemunhos das catástrofes. Afinal, viver entre ruínas é como ter o sentido temporal desarranjado. Aflitivo como avistar folhas de zinco, pedaços de cano, banheiras, pias, bacias, garrafas e dejetos perdidos em suas sólidas impotências por toda parte. Sem cuidados adequados, os jardins voltam a ser mato.
A beleza das ruas desaparecendo. Trepadeiras e parasitas recobrindo paredes semidestruídas de alvenaria caiada e tijolos ocos de argila. Ervas daninhas fazendo lugares aprazíveis parecerem velhos, como os das civilizações mortas. Mais aflitivo , ainda , esculturas, monumentos e estátuas, como raízes, arrancadas do chão. Os nossos cartões postais desaparecendo de vista no ar, como por encanto. E os pés de bananeiras nascidos ao léu como quê a emoldurar o que restou. Os nomes das ruas sempre sendo indiscriminadamente trocados. Placas exibindo os seus novos epônimos. A superficial , inconsequente e transitória homenagem aos supostos “heróis de ocasião”. Atitude inútil. Afinal, ninguém se importa muito com eles.
Resta a sensação de sermos os fantasmas do nosso passado e do futuro. Como se nossas vidas e nossas ambições já tivessem sido vividas e não sobraram nem as nossas recordações como relíquias. Um lugar onde o passado se foi e o que virá pareceria tomar o mesmo caminho.
Os dois estragando o dia a dia. E os índices inaceitáveis de pobreza e fome a falarem sobre ele. Um vácuo político horrível. Muito perturbadora a profundidade dessa “raiva africana”. Da destruição da memória das coisas. Em tudo. Me convenci, o Haiti é aqui.
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Delfino meu amigo dileto.
Como sempre surpreendendo em seus artigos.
Falo há muito tempo que não temos memória, tudo vai para o esquecimento.
Parece que sofremos do mal de Alzheimer precoce.
Enfim não sei se o Haiti é aqui porém, que parece uma “franquia” parece e, cobrando altos royalties em sua instalação.
Excelente texto, como sempre.