DE APARIÇÕES –
Dizem que quando se avista algum ser de outro mundo não se discerne bem o que se está vendo, pelo fato de não se saber nem mesmo se eles realmente existem. De repente, entraria em livre curso uma parte do nosso cérebro onde a ciência ainda não detém conhecimento ou controle. Entretanto, cada imagem tem a sua racionalidade geométrica. Elas surgem, não se sabe por que nem pra que, sem aviso prévio, num quê de vertigem após o qual ao relembrá-las vem sempre aquele friozinho na espinha. Passei por algo parecido.
O casarão ficava escondido nos cafundós de Parnamirim. Não havia qualquer sinalização pra se chegar até lá. Pegava-se uma estrada de areia à direita da rodovia e após uns trezentos metros avistava-se um imenso terreno de esquina contornado por cercas vivas e ocupado por inúmeras árvores frutíferas. Uma cancela de madeira que se obrigava ser aberta pelos visitantes descortinava um amplo corredor de areia ladeado por duas paredes formadas por pitangueiras, com a casa grande ao fundo exibida em toda sua exuberância. Ao chegar pareceu ser a coisa mais natural do mundo ver o dono da casa no alpendre em sua cadeira de balanço em prosa com um amigo. Sem querer incomodá-los inverti a sequência da minha rotina habitual indo conversar com os amigos na piscina ao lado.
Quando ele foi embora, sem eu perceber, me aproximei da porta principal da casa. O que aconteceu? Você sempre vem bater um papinho comigo antes de cair na esbórnia, Não quis incomodá-los, Incomodar quem? Descrevi em detalhes o que tinha visto e enfatizei minha absoluta certeza sobre o ocorrido. O espanto aflorou no rosto dele o suficiente para interromper a sua gagueira suave. Você está brincando! Pensei que era Helio Nelson, Gastão. Helio Nelson faz anos que não vem por aqui, Zedelfino! Pois era a cara dele, acredite. Afogamos o mal-entendido com alguns goles de Rainha à espera do almoço. Foi quando dona Iracema, a dona da casa, que tinha ouvido a conversa, chega com um álbum de família e me entrega. Na terceira página eu falei. Olha ele aqui. É meu pai, disse ela. Não se comentou mais nada.Mas o olhar deles, de um para o outro, e o silêncio pesado ,falavam mais alto. Diziam tudo. E com isto encerrou-se, aparentemente em definitivo, o argumento do drama.
Fingindo que nada tinha acontecido continuamos na azáfama daquele sábado de festa. Ora quem irá saber se Kubla Khan acreditava em tudo que dizia Marco Polo ao descrever-lhe as pessoas e a fantástica geografia dos lugares por ele visitados. Ou se Scherazade assombrava e encantava o sultão ao contar-lhe suas mil e uma histórias tão ambíguas, recheando duplos sentidos ao se reduplicar ao infinito sobre as cidades e seus habitantes invisíveis. Essas coisas acontecem. Aliás, de tudo acontece na vida. A vertigem simbólica dos detalhes que tanto se confunde com o tom encantatório próprio das fábulas e contos continuou em mim. Seria o casarão? Casas antigas guardam segredos.Talvez ela tivesse o dom de ver fantasmas e o comungava em segredo com o seu próprio passado. Ou talvez fosse eu a ter o dom de ver espectros surreais. Incrível, existe um momento em que de uma energia desconhecida forma-se uma imagem nítida tornada visível a olho nu quando se extrapola numa amplitude maior do que as que se formam apenas no pensamento, vá se saber por que.
Deveria ter sido isso, só poderia ser isso. Ao fim da tarde voltei pra casa sem conseguir tirar aquilo da cabeça. Dormi pesado, e bem, um sono sem sonhos. Claro que para tudo existe uma razão lógica. Mas a de algumas delas, talvez nunca se venha a descobrir.
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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