DE “CARTAS ESQUECIDAS” –
No dia 3 de Dezembro de 1965 recebi um livro de presente de Manoel Neto. À época a galera vivia doida pra saber quem diabo era na realidade o autor; um cara que escrevia crônicas semanais para um jornal de São Paulo, então transformadas em livro.
Os textos eram elaborados em forma de cartas que um tal Frei Francisco da Simplicidade fazia toda semana para Eugênia. Se era mesmo um padre ou apenas um pseudônimo, se realidade ou ficção, pouco importava. Viciantes eles eram como são hoje as novelas da TV aberta. Muita gente comprava o tal jornal só para ler as epístolas amorosas do enigmático colaborador. Eu li e reli o livreco, adicto, feito um drogado. Certo dia, após ler uma dessas cartas para a minha namorada, ela retirou um cigarro do meu maço de Carlton e escreveu nele uma frase de amor pra mim. Dei um beijo nela e o guardei no livro. Tão amassado e velho, hoje com um pouquinho mais de cinquenta anos, o cigarro virou marcador de página.
O tempo passou, o século deu uma virada. E ele lá, imprensado sempre no local onde os trechos eram relidos e pausados. Os amigos gostavam muito de me ouvir lê-los nos saraus. E discussões um tanto filosóficas aconteciam. Afinal, ler, ouvir música, falar de amor e sacanagem, com álcool e muita fumaça ativa e passiva entre velhos amigos, sempre dão nisso. Num desses encontros me deu uma vontade danada de fumar o marcador de página e transformá-lo em piúba. Entre etílicas gargalhadas, perdi a eleição.
Uma das minhas filhas soube da história. Pra evitar constrangimento , me adiantei e dei de presente a ela. Afinal, aquilo não era só uma porção de fumo picado enrolado em papel fino já gasto e vencido. Era (é) algo sólido, palpável, a testemunhar inerte a lembrança de um dos muitos e fugazes momentos de felicidade ao longo da minha vida. Uma vez órfão do marcador de páginas resolvi semana passada devolver o opúsculo ao remetente , como presente de aniversário de 75 anos.
Tenho certeza que ele vai gostar de reler alguns trechos sublinhados do “Cartas Esquecidas” do Silveira Bueno, vulgo “Frei Francisco da Simplicidade”. A mistificação literária dele, como a de Malba Tahan foi esclarecida. A do Frei Francisco só agora eu descobri. E viva o Sr. Google. Passagens como “ – Plantemos , amiga , para simbolizar o nosso afeto, uma roseira ou outra flor qualquer ? – Uma roseira bem rubra, bem viva , encarnada , ardente , como o sangue das nossas veias que lembra o escarlate dos teus lábios polpudos e vorazes”. Tinha pra mim que um padre não teria raça de escrever um negócio desses. Se expor a tal ponto.
Nem o twist e o hully gully haviam ainda aparecido. A vigilância solerte e atenta dos pais imperava. Período social em que dois amantes infelizes se sentiam “ o duplo coração da humanidade , perenemente em dor os dois polos da vida … o tormento dos que se quiseram : a angústia dos amorosos que jamais conseguiram unir-se”. Frei Francisco foi desmascarado. Eugênia nunca se soube quem fosse. Nada de novo , porém. Shakespeare cantou a bola bem antes. E Spielberg com a sua bela releitura de “West Side Story” volta , agora em 2022, a percutir a mesma tecla.
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