DE CURTO-CIRCUITOS – 

Pra que correr? A existência é curta. Logo se apoderarão de nós as espondiloses, as espondilites, as espondilolises, as espondilolisteses da vida. Não entenderam? Faz mal, não. É que médico diz certas coisas que o povo não entende, mesmo. Um dia vocês vão sentir na pele, aliás nas costas e nos joelhos, sem falar na cabeça, o que é pior, mesmo sem saber o significado delas, só sua significância. Questão de tempo, quando os discos vertebrais começarem desidratar e vocês diminuídos de tamanho começarem a “cepar” nas ruas como o fazem os carros velhos com os amortecedores das rodas bem gastos ou vencidos.
Mas existem coisas piores, eu acho, portanto eu que o diga. Além de esquecer nomes, sou péssimo fisionomista e de uns tempos para cá quando me deparo com certas imagens incorporadas à minha memória recente, tendo usar generalizações como camuflagem. Diga aí, meu irmão! Tudo bem, querida? Como vai, meu rei? É que a memória de curto prazo está indo pras cucuias, sempre a insistir naquele memorável acende e apaga.
A solidão das pessoas pode até ser invisível, o olhar, não. O meu, na maioria das vezes, me trai. Sempre aparece um sádico que saca a real e tenta me por uma saia justa. A solução é mentir e tergiversar. Lembra de mim? Claro, como não lembraria? Prazer revê-lo. Tento mudar de assunto. Gostou do filme do Woody Allen que está passando no shopping? Lembra, nada. Como é o meu nome? Ô, meu Deus, Ó minha “deusa dos bosques, compassiva escuta / meus queixosos e míseros clamores”. Pois é quando perco parcialmente o autocontrole e vocifero coisas desagradáveis de ouvir, procurando encontrar o balanço, o meio termo entre a insistência, a paciência, a verdade, o cinismo e o desconforto, sem perder a ternura. Vai te foder, caralho! Parece, então, que tudo se acomoda bem e pareço manter o controle da situação, entre os risos dos que estão ao redor.
Claro existem as exceções. Arnóbio Abreu após as duas primeiras chamadas de aula já ligava todos os nomes às pessoas e Nilton Vale, este gênio, que, ainda hoje, lembra de absolutamente tudo o que lê e detém intactos todos os segredos da Anestesiologia e da Farmacologia. Pobre de mim. Mas, aqui pra nós, nada como uma lembrança mal lembrada. A fisiologia de cada um é foda. A terceira idade, também. Ridículo usar as muletas dessas ausências que nos carregam a toda hora. O diabo é que o raciocínio continua bem. As ideias, também, desde que anotadas nas exatas ocasiões em que elas ocorrem. Os editores de texto dos Iphones foram concebidos pra isso, às vezes penso.
Um exemplo cabal: se eu não tivesse anotado isto na hora, lembrar agora não seria possível. Pitágoras não parava muito em casa e Enusa, sua mulher, aproveitava a situação para copular com quatro cadetes, que estavam acantonado ali perto.Um dia ao chegar em casa mais cedo, surpreendeu-os e matou os cinco e decidiu enterrá-los no jardim. Movido por uma consideração à esposa, dividiu o terreno ao meio e, numa das metades, sepultou-a. A outra metade foi dividida em quatro quadrados iguais, onde enterrou os amantes. Desta forma, os quatro soldados ficaram a ocupar um espaço idêntico ao ocupado pela mulher. No dia seguinte, Pitágoras subiu à montanha para meditar e pintou a revelação. Era óbvio: “A soma dos cadetes é igual ao quadrado da puta Enusa”. Se essa porra tivesse sido ensinada assim no colégio Marista, o aprendizado teria sido mais fácil, mas tais métodos não faziam parte do cânon pedagógico.
Acontece que os irmãos faziam, talvez até sem querer, coisas geniais. Quando não prestávamos atenção às aulas de religião, após rezado o terço e seus mistérios, sempre ao começo das aulas com aquele acorde monocórdico repetido à exaustão “naquele tempo dizia Jesus ao seus discípulos …” (que me iniciaram no mundo das metáforas) , éramos obrigados a decorar e copiar textos clássicos. Assim, até hoje, recito de cor e salteado trechos de “Os Lusíadas”.
O segredo da sobrevivência é sempre ir recarregando a bateria das coisas que nos fascinam. Afinal, costumo dizer que a estrada da morte é de paz e remanso e a da vida nunca é de descanso. Mas o detalhe é que ninguém parece entender que a minha vida é um litro aberto e que eu tenho um nome a zerar. E viva a tal da memória de longo prazo em mim intacta, ainda.
José Delfino – Médico, músico e poeta.
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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