DE POEMA (QUASE) EM PROSA –
Ah as palavras…
Num vai e vem em minha mente se abrem e fecham em copas, como lábios.
Como portas, como dedos de mãos que vagas imitam, em arco envergam-se.
Sobem e descem às folhas de papel, se curvam se rendem e escrevem e não dizem.
É que elas se escondem nos vãos da casa, na janela no telhado, debaixo da escada.
Nas frestas do chão, em utensílios de pouco ou nenhum valor.
Esquecidas em armários, em quartos de despejo, em malas e cartas.
Em velhas compoteiras, no oco de elefantes de falsa porcelana em cima das geladeiras.
Como e lembradas são à paisagem inglesa partida das xícaras de chá trincadas.
Amanhã de cacos, esquecida no fundo das cristaleiras
No varal do guarda-roupa, onde pendurados, cabides enrolados em trapos
Imitam as curvas dos teus pequenos seios, tuas ancas estreitas
Brancas em quadros negros, expostas, estão soltas nas ruas sem eira nem beira
Em castelos de cartas se encobrem em torres de babel
Se confundem como a água na sede, como o fruto na fome
Como a dor esquecida na cicatriz de um antigo corte.
Difícil achá-las. Questão de segui-las, vazar a vista, enxergar sonhos
Achar nos olhos a cegueira em quadros objetos/ pessoas.
Procurar bem lugares onde nenhuma esteve. Ir e acaso encontrando-as, ouvi-las.
E fazê-las tangíveis, corpóreas, palpáveis.
Mas amiúde nem tudo é tangível.
E pior, numa foto ou num quadro, detalhes de coisas discretas invisíveis
Quase indizíveis são.
Tangível é o meu peito, onde elas se acoitam e dentro dele um relógio.
A consoante e vogal afeito que bate bate e bate a três por quatro.
Pulsando dodecafonicamente, às vezes em semitons de violão.
O descompasso.
Tictac tic tac tictic tac que eu só percebo e não se escutam
A não ser quando repousam cabeças entre mamilos, ou ouvidos sobre o meu coração
Mas lá estão escondidas, na força do vento, na inclinação da árvore.
Na dança do grão de areia, na forma da nuvem, no vazio do bolso.
No sabor da conserva, no fermento da raiz, no tempero da panela.
Na mistura dos legumes, no iogurte no mel.
No correr da água, na lágrima recente, no mercado persa.
Na harmonia em desordem, na tela do cinema, na catacumba caiada.
Embaixo da folha em branco
No desejo invisível ao ver teu ventre exposto
Nas partes visíveis de púbis encobertos.
No dormido despertar dos teus olhos se abrindo.
E se vão e se perdem em gritos gagos no céu da tua boca.
Em cheiros e cores na flor do desejo no fogo-fátuo do fálico carinho.
No azul dos anos, no vermelho das vulvas.
Na selva dos teus pelos, meu negro crespo pente.
E se acham e se queimam no sol da pauta musical.
Na tua língua calada, no moinho de vento, no grito dos pássaros.
No Beethoven surdo, na cabeça do alfinete.
No falso desvelo passado a limpo no final do pesadelo.
No meu ódio mudo a inimigos vivos.
Nas minhas córneas embaçadas de saudade
No desgosto de ver um amigo morto.
Até no barulho do ido tempo, estão num largo de catedral.
Mas essas pararam no tempo e se encantaram para sempre.
Ao meu lado sorrindo ao som de um sino a tocar.
Degraus molhados, eu subindo, vendo no céu passar
Um avião.
José Delfino – Médico, músico e poeta.