DE UM TIPO PARTICULAR DE FOME –
Hoje vou falar sobre a fome de assunto dos que tentam escrever por encomenda, contos, crônicas, ensaios curtos, e poemas, aparentemente, sem nexo ou lógica. É sempre uma surpresa o que o pensamento trás. E a transposição dele para a linguagem escrita deveria sair, se é que se poderia comparar, tão perfeita e leve como as sensações que surgem em cidades turísticas ao mundo expostas às suas iluminações indiretas. Para complicar mais ainda, limpa e funcional como Paris, por exemplo, onde o belo que paira no ar funciona.
E o momento em que ele ocorre (ao menos comigo) é complexo, imponderável, fugidio e rápido. E vem repleto de lapsos, falhas, erros, e abalos quase de porte geológico (parece) como os que ocorrem no interior de João Câmara onde , em meio a todo aquele rumor de terremotos que nunca dão certo, corre-se sempre o risco de morrer de tédio. De repente dá aquele clique sinalizando o início do processo em casa, na rua, na rede, no chuveiro ou no carro (o caso presente) enquanto ouvia ao acaso uma música de Chico. Estacionei após o semáforo na primeira faixa amarela e organizei a ideia disposto a compor algo semelhante e a salvei aos cuidados da Apple. Foi quando deu a síndrome da cópia xeróx. No transcurso até a minha casa fiquei matutando o tema.
Levei em consideração o que me escreveu o amigo, de última hora, e ainda virtual, Ivan Maciel, quando afirma que hoje em dia se fala (não em plágio ou influência) e sim em intertextualidade, que é inevitável em qualquer escritor, por mais “original” que ele seja.
Assim, tomei disposição. Me pus mãos à obra com aquela sensação que a gente tem ao ler e interpretar uma partitura musical entre claves, pausas, fermatas, colcheias, fusas e semifusas, tenta transformar em linguagem sonora o que ela exibe (como a procura do “mot juste” num poema) e o violão só geme e a gente quase chorando junto. E o poema foi saindo aos trancos e barrancos e findou assim:
“Mas é que tudo é igual e um tanto vulgar / O mosaico ruidoso da vida estúpida / O silêncio e a solidão dos charcos / A babel da rotina habitual nos banheiros / O olhar poligonal de escorpiões imaginários nas faces se arrojando de chofre à tona / Como as de afogados os corpos boiando / O fôlego do aroma em vidros de loção / A forma que a foto retrata a essência / O odor repelente de meia suja e geleia / Portas que fecham e se abrem em janelas / E os insetos que entram zumbem e voejam / Mágoas que escondem num canto / A faca afiada que brando com esmero / A banalização da morte em espera do medo em meras duplicações / Tudo a esmo em espanto afinal / As pocilgas estão onde estão os corações”.
E por ter falado em falhas, agradeço sempre às minhas que é o que parece me humaniza, apesar de ficar com os nervos à flor da pele ao tentar de uma certa forma em vão superá-las, mas os textos são impressões digitais. Do ponto de vista musical, o poema saiu afônico. Afinal, tentar imitar o que vai na cabeça do Sr. Buarque de Holanda, apesar de não ser de bom tom, é definitivamente impossível. E assim fiquei só com o meu “Cotidiano”, o meu “todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda às seis horas da manhã … “, preso à minha mesmice como que a ouvir Bertold Brecht, que tinha aquela mania de acertar na mosca em tudo que escrevia, repetir : “Tenho muito o que fazer, preparo o meu próximo erro”.
José Delfino – Médico, músico e poeta.