DELICADEZA –
Termino de ministrar uma aula. Observo o relógio do computador e calculo que ainda posso fazer uma curta caminhada. Calço o par de tênis e percebo, com certa tristeza, que sua sola tem regiões de desgaste diferentes e compreendo, assim, o motivo para algumas dores no corpo. Tenho andado errado! Perceber isso depois dos quarenta me leva a uma inquietação engraçada. Sempre foi assim e nunca percebi ou começou agora? Perco alguns minutos sentada pensando nisso enquanto traço mentalmente o melhor percurso a fazer. Coloco a máscara e saio do prédio.
Vou caminhando, enquanto os olhos cismam em se fixarem em meus pés, tentando entender quando isso começou. Reviro a memória buscando achar alguma informação importante que me diga: “sempre foi assim!” ou “deve ter começado agora!” e… nada! Nenhuma pista.
Volto por ruas diferentes e passo, então, em frente à antiga casa de Chicão, agora a quadra da escola de nosso caçula. Chicão era uma voz. Sim, uma voz. Quando pequena e ainda filha única, ao fazer alguma travessura, Chicão me telefonava. Por travessura, preciso explicar, era uma resposta mais atrevida a mamãe ou apenas me negar a almoçar. Assim que isto acontecia, quase que imediatamente, o telefone tocava naquele cantinho da sala de estar. Lembro do sofá floral e do telefone verde de disco. Mamãe me dizia calmamente que era para eu atender e, assim que colocava o fone em meu ouvido, Chicão dizia: Bárbara aprontou?
Eu tinha medo. Não de Chicão! Ele sempre foi carinhoso, gentil. Me perguntava porque eu tinha feito ou deixado de fazer alguma coisa e, em seguida, pedia para eu prometer que isto não se repetiria. Falava que eu era uma criança legal e que podia sempre melhorar. Terminada a conversa, colocava o telefone no gancho e mamãe me questionava quem era. Chicão, mãe, mas já prometi que não vou fazer isto – ou aquilo – novamente.
E assim se seguiam os dias. Passávamos de carro em frente ao que seria a casa de Chicão, na época, um terreno com muitas mangueiras, e papai me perguntava se eu queria visitá-lo. Nunca quis. Por mais que Chicão fosse legal comigo… Caramba! Ele via tudo! Sabia tudo! Dava um certo medo de conhecer uma pessoa assim. Nunca o vi.
Na verdade, via-o diariamente. Chicão era papai! Ligava de seu trabalho no meio de seu expediente após mamãe contar minha falha… Nunca percebi isso… Com o tempo as ligações de Chicão foram ficando mais escassas. Não sei ao certo se comecei a me comportar melhor ou se eles, meus pais, cansaram da técnica de ensino. Um dia, já adolescente, papai imitou a voz de Chicão e relembramos tudo com a delicadeza de reviver o passado.
Hoje, ao passar em frente à sua casa – que não era sua porque ele nunca existiu, mas que era muito sua porque ele existia dentro de mim e isto é mais que suficiente para que ele tivesse vida – lembrei-me disso tudo e esqueci os meus tênis com solados diferentes pelos passos errados. Eles se tornaram secundários… Lembrei-me dos passos errados que meus pais consertavam ou tentavam consertar em mim com delicadeza.
Delicadeza.
A mesma delicadeza que me foi docilmente ofertada por um colega do blog que ainda não conheço e me enviou uma mensagem sobre meus textos. A mesma delicadeza de quando recebo de um colega de profissão fotos antigas com uma turma de alunos. Que saudade!
Delicadeza.
E percebo que entre métodos não convencionais de ensinar, seja na relação pai e filho, seja na relação professor e aluno, a delicadeza deixará marcas que não serão apagadas. Talvez umas mais fortes que as outras. Como minha pisada errada tem deixado marcas nos passos que dou pelos caminhos do mundo…
Bárbara Seabra – Cirurgiã-dentista, Professora universitária.
Bárbara Seabra – Cirurgiã-dentista e Professora universitária