O vento lá fora geme
Colhendo estrelas mortas
O homem foi descendo sem pressa a rua solitária como ele. Era tarde da noite. O som dos próprios passos quebrava o silêncio das calçadas e esquinas. Seu vulto oscilava pelos pontos de luz e escuridão entre os postes da iluminação pública. As placas e vitrines das lojas estavam às escuras, uma ou outra ainda acesa aguardando o tempo programado para o desligamento automático.
Olhou para os lados por obrigação, não havia o que temer. O pior já tinha acontecido.
Havia só um mendigo sentado lá adiante, envolto em trapos quase pretos, entrincheirado no ponto mais escuro da calçada em que se instalara, e que se aproximava imóvel pelo movimento dos passos do homem que descia sem pressa a rua solitária. Mais um pouco, estariam próximos na penumbra.
Era um coração vazio em movimento e o vazio em um coração sem movimento. Era um encontro de dois desencontros, nada mais que duas misérias cruzadas sem motivo pelo acaso, por nada.
O homem finalmente chegou ao raio de ação da presença imprestável do mendigo. Imóvel, o um resmungou de lá algo impossível de traduzir. Impassível, o outro apenas passou em silêncio, escutando sem ouvir, sem olhar para trás. E seguiu para encontrar-se com a própria solidão.
Uma motocicleta barulhenta e veloz criou um clima de frio na espinha, alterou o humor do mendigo. Ele gritou coisas ininteligíveis num dueto surrealista com o alarde do motor, que passou e logo sumiu sem deixar vestígios.
O homem sem pressa chegou em casa, abriu uma bebida e espalhou o corpo na poltrona. Preferiu a penumbra, apenas o rastro de uma pouca luz que entrava pela janela lavando o pedaço de um móvel e derramado no chão como uma poça d’água.
Na rua uma poça d’água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu para o chão
Tal qual o chão da minha vida
A minh’alma comovida
O meu pobre coração
A brisa bamboleava bêbada levando a fumaça do cigarro para lá e para cá, talvez um sopro de incenso mortal sobre aquela tristeza.
O homem finalmente se dera conta de que o amor guardado tantos anos havia se arrastado para o fim. Morrera como nascera, como um riacho que corre, se agiganta, vira rio caudaloso e se afoga naquela tanta água que já não cabe no leito.
Estava feito, não restava mais nada a fazer. Ele não sabia como se olhar no espelho depois que não se viu, como num espelho, no rosto em que sempre enxergou sua cara-metade estampada.
Se fosse resolver
Iria te dizer
Foi minha agonia
Se eu tentasse entender
Por mais que eu me esforçasse
Eu não conseguiria
E aqui no coração
Eu sei que vou morrer
Um pouco a cada dia
E a amargura e o tempo
Vão deixar meu corpo
Minha alma vazia
Como se não fosse tão longe
Como se a vida fosse um perigo
Como se houvesse faca no ar
Não havia culpas e nem deu tempo para desculpas. Nem palavra houve para ouvir. Até os olhares haviam se perdido. Morrera porque não conseguira mais viver depois de conjugado o verbo murchar.
Evaporou para fugir da cerimônia do fim – a dor da despedida seria mortal –, como se fosse possível morrer sem funeral, um fevereiro sem Carnaval. Sentiu a fantasia rasgar na avenida enquanto o desfile de tudo atravessava a melodia que tocou tanto, e tanto doeu lembrar.
Uma motocicleta passou veloz estrondeando tudo lá na rua. Desta vez, a sensação de frio na espinha foi menor. Imaginou que o mendigo gritara irritado repetindo o dueto barulhento de antes. Ficou na dúvida se era o mesmo idiota se divertindo ao perturbar o sossego dos outros, ou apenas mais um desses idiotas urbanos de pouca serventia.
Abriu mais uma bebida, inebriou a dor. Havia um mar de segredos que foram guardados para ninguém saber o que só eles sabiam. Passaram a vida driblando o mundo, porque não podiam jogar aberto. E perderam o jogo!
Não, não mais se encontrariam, não havia mais nada para reencontrar. Restou a lembrança de um olhar distante, vazio, cabisbaixo, o silêncio do não sorrir, do nada a dizer. Era triste, era riacho seco, mato esturricado, era o fim.
Era a velha dúvida que até gerou canção, se é o trem que passa ou passou quem ficou na estação. Era o medo de ir embora, mesmo sabendo que já não havia lugar para ficar.
Era a ressaca do amor empobrecido, mendigo sem forças para implorar. Era o amor maltrapilho, no avesso. Desamor. Quase invisível, evaporando na fumaça bêbada ao sabor da brisa, esvaindo bamboleante para aqui e para li. Um incenso queimado, uma tristeza consumada no resto de cheiro, na penumbra impregnada, a fresta da janela como rastro de uma pouca luz. O chão alagado sem água.
Olhou para o céu sem graça, poucas estrelas, todas miúdas! Ficou com a impressão de que tudo ao redor estava triste, que o vento gemia, que as estrelas estavam mortas. Não encontrou poesia.
Olhou mais uma vez o telefone, aquela última esperança de quem tem certeza que vai ganhar uma loteria acumulada. Mais um pouco, a madrugada quase no fim, o Sol rompendo a barra da noite, o escuro sumindo, a aposta perdida, o bilhete no lixo. Papel velho. Nada a fazer. A manhã prestes a surgir, pronta para apagar os restos que tentaram sobrar da última noite.
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um caco de vidro
É a vida
É a noite, é a morte
É o mistério profundo
É o vento ventando
É o fim da ladeira
É o fundo do poço
No rosto o desgosto
É o fim do caminho
Ajeitou o corpo na poltrona – conseguiu apenas tirar os sapatos com os próprios pés e acredita ter ouvido o som deles caindo no assoalho –, o sono estava vencendo o desamor e o cansaço estendidos. A cascata de luz secara do chão.
Ficou com uma quase certeza de que pensou no homem mendigo, ferido, obscuro em sua dor revestida por trapos quase pretos, que gemia seu sofrimento pelo amor que se foi sem ter dormido, sem fechar a porta, sem dar bom-dia! E sem ninguém perceber, o que era mais dolorido.
-> Para todos os amores que vão se perdendo e morrem sem ter vivido e sem ninguém perceber a iminência da morte.
Trechos de:
Via Láctea (Horácio Paiva)
A deusa da minha rua (Newton Teixeira-Jorge Faraj)
Agonia (Mongol)
Léo e Bia (Oswaldo Montenegro)
Águas de março (Tom Jobim)
Heraldo Palmeira – Produtor Cultural