DISCURSO –

Minha intenção hoje, quando completo noventa anos, era juntar a família e alguns amigos num jantar onde esse posso provar que ainda estava vivo e bulindo, mesmo ao completar noventa anos.  Cheguei a fazer a relação, escolher o local, pensava na comida e na bebida. Minha neta, Thaisa, estava encarregada de resolver o assunto. Mas esse convid-19 me proibiu não apenas de convidar 19, mas todos os demais. Lamento, pois gostaria de tê-los todos comigo hoje à noite.

Mas, publico aqui as palavras que iria dizer, especialmente para registrar o prazer enorme que seria a presença de todos vocês e a minha alegria.

Estou lendo estas palavras. Sempre tive dificuldades para falar em público. No meu trabalho, isso era pouco exigido. Quando entrei na universidade, fui obrigado a falar, como professor. Preparava minhas fichas, para não esquecer o que ia dizer. Depois, a necessidade de falar foi aumentando, culminando com meu tempo de Secretário de Educação. Escrevia o discurso, mas minhas mãos tremiam como varas verdes e colocava o papel sobre uma mesa, para poder ler. Depois, comecei a segurá-lo sem problemas, fazia umas fichinhas para não esquecer os temas e finalmente passei a falar de improviso.

Resolvi escrever estas palavras, por que quero guarda-las. Mas não vou falar demais. Não se preocupem. Tenho por lema obedecer aos ensinamentos do velho Churchill que aconselhava: ao falar, seja breve, fale baixo senão ninguém lhe escuta, use, das palavras, as mais simples e, das frases, as mais curtas.

Em primeiro lugar, devo dizer da alegria que sinto com a presença de vocês todos aqui, comemorando comigo nove décadas. Quando era adolescente, achava que o tempo não passava. Meu desejo era chegar aos dezoito anos, principalmente para tirar minha carteira de chofer (não existia motorista naquele tempo) e ficar independente. E imaginava: se eu chegar aos setenta, já foi um bom tempo. O tempo passou muito mais rápido do que eu pensava, passei dos setenta, graças à Deus, e estou nos noventa. Vou esperar os cem. Nada é impossível. Minha avó materna morreu com 101.

Agora, confesso, essa minha alegria tem uma sombra. A falta de Ione aqui. Sua presença seria contagiante, pela sua personalidade, pela sua alegria, pelo seu carisma, que se sobressaia onde quer que ela estivesse. Essa terrível doença que a acometeu tirou-a totalmente do nosso mundo. Saúde física, excelente. Mental, inexistente. Sei que ela adoraria estar aqui conosco. Peço que façamos um brinde a ela: Viva Ione.

Como a gente se sente aos noventa? Tenho escrito algumas coisas sobre isso. Talvez vocês tenham lido o meu artigo no Facebook a esse respeito. Do ponto de vista mental, acho até que melhorei. Do ponto de vista físico, sinto o peso da idade. Dores aqui e ali, dificuldades de locomoção, não esquecer de tomar os remédios que os médicos lhe passam, conviver com tudo isso com tranquilidade, sabendo que é o preço que se paga pela longevidade, preço até não muito caro. Resisto e enfrento com a maior naturalidade. Inclusive por que não há outra solução.

A convivência com a família e os amigos é outro fator que ajuda muito. Saio muito pouco de casa durante a semana. Só quando há obrigações forçadas. Uma delas, semanal, me é prazerosa por um lado e cansativa por outro: ir ao supermercado. O que frequento é o meu Grande Ponto. Encontro muitas pessoas, não muitas do meu tempo, que me alegram ver. E aí sempre lembramos coisas do passado, que nos foram agradáveis. As desagradáveis, as esqueço fácil.

Fins de semana, sábados e domingos, sempre almoço fora. Às vezes, na casa de Júlio. Normalmente, saio com os netos para almoçar em algum restaurante. É uma forma de conviver com eles, de sair de casa, aproveitar os anos que ainda me restam. Me faz muito bem.

Durmo cedo, no máximo dez e trinta, e acordo cedo. Televisão, hoje, vejo muito pouco. O noticiário da noite é exceção. Já os esportes, são o meu passatempo ideal. Futebol europeu (o nosso está cada dia pior, minha opinião), tênis, o meu fraco, rúgbi, futebol americano, basquete americano. Os jogos dos grandes times europeus, Barcelona, Real Madrid, Manchester United, Manchester City, Bayern de Munique e outros mais, são meus preferidos. Chego a assistir hockey no gelo e golfe. Também gosto de assistir filmes, no Netflix e no YouTube.

Gosto muito de ler, leio muito. Claro, tenho meus assuntos preferidos, especialmente livros de história e sobre a segunda guerra mundial. Raramente leio romances, mas leio algumas biografias de pessoas que me interessaram. Também ficção cientifica, que já me seduziu mais. E sublinho trechos que acho interessantes, para encontra-los mais facilmente.

Toda essa leitura e televisão têm uma desvantagem. Obrigam-me a ficar muito tempo sentado. E isso não é bom. Tento compensar indo à academia três vezes por semana, o que ajuda muito. Mas, confesso, com uma preguiça danada. Ainda vou por que Carlinhos vem me buscar e me deixa de volta. De vez em quando, invento alguma desculpa amarela para faltar. E me arrependo depois.

Estou terminando, e quero encerrar lembrando-me dos amigos que se foram, e da falta que me fazem. Estão todos os dias nos meus pensamentos e suas ausências me deixam muitas saudades. Não os menciono aqui pois poderia esquecer alguém, do que não me perdoaria.

Mas, vou usar uma das saudações que Eudes Moura fazia, ao beber algo, numa comemoração como esta e que nos lembra que aqui no Nordeste somos quase todos cristãos-novos, judeus que escaparam da inquisição numa conversão forçada. Uma expressão hebraica, li-chaim. Li-chaim, à vida. E muito grato pela presença e por escutarem com paciência este velhinho. Espero ver a todos nas dez décadas.

Li-chaim.

 

 

Dalton Mello de Andrade – Escritor, ex-secretário da Educação do RN

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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