DO LIVRO DAS LEMBRANÇAS –
Com a permissão do eventual leitor, minhas lembranças, mais uma vez, pedem licença e passagem. Elas me levam ao tempo e lugar da pureza infantil, aquele do qual guardamos singelas e imorredouras recordações.
Muitas deusas reinaram na Guarita, e é impossível esquecer logo de uma verdadeira Corte delas. Pois era quase isso, a casa de “seu” Paraense. Ele tinha quatro filhas que, a exemplo de outras, habitavam o imaginário masculino do bairro, incluindo certo petiz, com mais ou menos dez anos de idade, de cujos olhos não escaparam a irradiante simpatia de Iolanda, Fanca, Marlene e Têca, alegres, gentis, irrequietas, e bem relacionadas. Se bem me lembro, sua casa foi visitada até por artistas nacionais. Nelson Gonçalves teria almoçado lá, certa vez. Acho que era ele que tentávamos ver através da janela, que escalamos com dificuldade pelo lado de fora, atraídos pela movimentação provocada pela visita.
Eram amigas da minha mãe, e, por isso, eu podia compartilhar da amizade que as unia, intrometendo minha curiosidade infantil nas suas conversas sobre o rádio, cinema, revistas semanais e todas as trivialidades que ocupavam suas mentes ávidas de diversão e lazer. Convívio prazeroso, agradável, em virtude do conhecido bom humor das “meninas de seu Paraense”. Eram uma família especial, incluindo Zé Pereira, o irmão e a mãe, de quem não tenho lembrança. Morrera jovem, parece. Generosos, permitiam que, diariamente, coletássemos água na torneira instalada no quintal da casa. Por ser o imóvel de propriedade da Rede Ferroviária, a coleta deveria ser comunitária, e nunca sentimos qualquer má vontade ou irritação pelo fato de, diariamente, cruzarmos o seu portão para aquela tarefa.
Ao lado da casa, que era de esquina, os garotos jogavam futebol, e, quando a bola caía atrás dos muros, alguém era escalado para trazê-la de volta. Era quase uma aventura, porque ali havia um bravo vira-latas, mantido amarrado, que, com zelo e muitos latidos, guardava o terreno e, quando estava solto, avançava sobre quem fosse resgatar a bola. O cachorro chamava-se Charles, e certa vez, quando eu saía com um “galão” de água do quintal, conseguiu, mesmo preso à sua coleira, abocanhar-me a perna um pouco acima do joelho, arrancando um pedaço da minha coxa magra. O ferimento não sangrou e eu, com vergonha das meninas que me acudiram, não chorei. Tenho até orgulho da cicatriz, bem visível até hoje.
A Guarita da atualidade parece esconder ou esquecer que, no passado, não era um bairro de marginais e bocas-de-fumo, como nos informam as crônicas policiais. A imagem formada pelo noticiário e aceita sem contestações faz crer que ali sempre foi um valhacouto de traficantes e delinquentes (vândalos?) coisas que existem em todo lugar. Mas quem já foi parte da alma da Guarita pode se orgulhar, na lembrança de que um dia ali viveu não “os anos dourados” da sua infância ou a “fase áurea” da sua vida, mas, sim, uma rica experiência de vida que só os simples podem experimentar e oferecer. E, embora poucos saibam, de lá também saíram advogados, médicos, professores, funcionários públicos, políticos, militares e praticamente todos os elementos aceitos por sua dignidade e relevância social. Caráteres alicerçados na dura vida do subúrbio ainda hoje se destacam, provando que não existe só uma forja no laboratório humano de uma cidade. A Guarita do passado sofreu desassossego e preocupações, porque também abrigou infratores, beberrões e desordeiros. Mas o seu universo humano era tão interessante e rico que merece a lembrança dos que lá viveram nos anos em que, não importam os motivos e estímulos, o país era otimista, ufano e até ingênuo.
Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais
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