DOCE DE MAMÃO –
Pense numa coisa sem gosto de nada. Pensou? Pois se nada lhe vem a lembrança, então experimente doce de mamão. Prepara-se o doce fatiando o mamão verde e depois cortando as fatias em cubos pequenos. Despeja-se o produto do corte numa panela com água fervendo e adiciona-se açúcar. O resultado é uma calda adocicada envolvendo os cubos translúcidos da fruta desprovida de qualquer sabor.
Lembrei-me do doce de mamão quando do lançamento do livro “RECEITAS & MEMÓRIAS DE UM BISTRÔ – A cozinha do Dois Vinho e Gastronomia”, no dia 24 de fevereiro último, autoria de Severino Marques e Roberta Hunk. Ele, médico, coronel da Aeronáutica e formado em Gastronomia, é portador de Esclerose Lateral Amiotrófica-ELA, que imobiliza o indivíduo ao ponto de não conseguir mover nenhum músculo corpo, além de alguns poucos da face – olhos e boca.
Severino desenvolveu as suas receitas com extraordinário esforço e determinação, porquanto sem paladar ou olfato. Inimaginável concluir tal tarefa. Mesmo assim foi adiante usando apenas a lembrança do cheiro e do gosto de cada ingrediente. Comunicava-se com piscadelas de olhos e restritos movimentos da boca. Dessa forma penosa, num código que cuidadores treinados interpretavam, conseguiu orientar os cozinheiros como preparar todas as receitas contidas no livro.
O resultado foi uma belíssima obra. No livro não consta a receita do Doce de Mamão, mas ele ensina como fazer o delicioso Bolo da Mamãe, a maior cozinheira do mundo. Se despertei a sua curiosidade, passe lá na “Banca do Tota”, na Afonso Pena e folhei o livro. Severino está com a ELA há seis anos.
Mas, voltemos a nossa história. Na mais tenra idade, algo por volta dos oito ou nove anos idade, reclamei de minha mãe a pouca quantidade de doce que me foi servida como lanche da tarde. Reclamei e comparei o volume com o destinado aos meus outros irmãos. Não quis comer o meu quinhão e dei escândalo, fiz ver e acontecer.
Tudo isso com a intenção de induzir dona Laura a aumentar a minha porção de doce. Pois bem, de tanto azucrinar a paciência de mamãe o objetivo foi alcançado. A terrina com todo o doce da sobremesa da família foi-me posta à frente com a determinação explícita e autoritária de esvaziar o recipiente. Limpar a doceira.
Ao meu lado, dona Laura com um chinelo na mão orquestrava a degustação forçada. Depois de saciado, ainda com o vasilhame de doce pelas beiradas, ameacei parar a comilança. A cada tentativa de desistência seguia-se uma chinelada. Não lembro de ter apanhado tanto em toda minha vida como naquele dia.
O bendito doce de mamão desapareceu de minha dieta alimentar, assim como a gula por doce de qualquer natureza. Tentar voltar a comê-lo, até tentei algumas vezes, mas ao me lembrar das chibatadas desaparecia qualquer prazer e gosto.
Com calma e com jeito posso até retornar a apreciar doce de mamão. Primeiro, numa mistura do mamão com o melão. Seria o doce de mamelão ou memamão, tanto faz. A partir daí, diminuindo a percentagem do melão até chegar ao mamão puro. Dando certo o experimento prometo a dona Laura – já ausente deste mundo – voltar a ser um aficionado do doce de mamão em sua homenagem.
E como toda história requer uma moral que a justifique busquei inspiração no Barão de Itararé para desenvolver minha máxima: “É melhor o pouco com insatisfação, que o muito com indigestão e com o corpo lanhado de peia sem qualquer satisfação”.
José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro Civil