ENTRE CAFÉS E LIVROS –

Dizem que as primeiras cafeterias do mundo surgiram no começo do século XVI no pujante Império Turco-otomano. Em Meca, no Cairo e, claro, na capital Constantinopla/Istambul. Nelas jogavam-se xadrez e gamão. Havia música e dança. O café não era a única bebida servida, por óbvio. E o mais importante para nós: discutiam-se tanto as fofocas do dia como os assuntos mais elevados. As cafeterias já eram até conhecidas como “escolas de cultura”.

Faço essa pequena introdução porque ela é importante para entendermos a “cultura dos cafés”, como conhecemos hoje, no mundo ocidental. Reza a lenda que essa ideia nos chegou com a vitória do Império Austro-húngaro no segundo cerco de Viena pelos turco-otomanos em 1683. Paradoxalmente, vencidos conquistando culturalmente os vencedores, como comemoração do triunfo, dá-se início à era dos cafés vienenses.

Como anota Noël Riley Fitch em “The Grand Literary Cafés of Europe” (New Holland Publishers, 2007), no que toca à Europa e à civilização ocidental, “outras cidades podem reclamar a primeira cafeteria, mas há pouca dúvida de que foi em Viena que a cultura do café/espaço de convivência tomou a sua forma mais característica. É na Áustria que essa cultura tem durado mais, tem mudado menos, e ela tem sido a mais imitada pela Europa afora”. Mesmo sendo Paris a cidade dos cafés mais badalados, Viena é, para nós, origem e modelo. Fato!

Embora Viena hoje tenha um ar mais provinciano – “antiquado” talvez seja até a palavra mais justa – que Londres ou Paris, ela foi antanho a capital de um enorme Império. Foi quando cidade imperial e nos anos imediatamente seguintes que os seus cafés literários tiveram os seus dias de glória. As mesas do Central, do Landtmann, do Imperial, do Sperl, do Museum, do Griensteidl e de outras casas menos votadas fervilhavam, de fatos e de gente. Entre os habitués estavam gigantes das letras como Stefan Zweig, Elias Canetti, Robert Musil, Rainer Maria Rilke ou Karl Kraus. Havia Peter Altenberg, o “Sócrates de Viena”, que fazia do Café Central seu “domicílio”, seu salão de receber e sua sala para estar, sonhar e escrever. Era até possível esbarrar com Franz Kafka no Café Herrenhof. Se esse fosse o meu caso, certamente perguntaria a ele sobre a “lógica do arbítrio” do seu romance jurídico “O processo”. E isso sem falar dos gigantes do verbo musicado. Afinal, Viena é também uma ode à melodia. Schubert (o mais vienense dos grandes compositores), Johann Strauss I e II (e suas valsas vienenses), Brahms, Bruckner, Richard Strauss, Gustav Mahler e Arnold Schoenberg, todos eles viveram ali.

De toda sorte, ainda hoje, poucas cidades podem rivalizar com Viena em número de cafés históricos e literários. “Viena é uma cidade de cafés”, diz Antonio Bonet Correa em “Los cafés históricos” (Ediciones Cátedra, 2014). E complementa: “Verdadeiras instituições da vida cotidiana, pública ou privada, os cafés da capital austríaca desempenham um papel de primeira ordem no que atine à imagem da cidade”.

Estive na capital da Áustria duas ou três vezes, se não estou enganado. Vi seus monumentos antigos. A Wiener Staatsoper (Ópera Estatal de Viena), a Catedral da cidade e a Karlskirche (Igreja de São Carlos), os palácios de Schonbrunn, Hofburg e Belvedere, e fui até o Prater, tido como o parque de diversões mais antigo do mundo. Na verdade, cheguei até a fazer um “turismo jurídico”, indo em busca do direito puro, na figura de Hans Kelsen, para nós, o “Mestre de Viena”. Foi tudo muito gostoso, relembro.

Todavia, se retornasse hoje a Viena, eu sobretudo iria me sentar num dos seus muitos cafés, pediria um expresso ou um café turco, abriria um livro e veria o passado e o presente passarem. E, se morasse lá, faria como o comerciante de livros usados da novela do citado Stefan Zweig: teria o meu escritório, onde exerceria o meu mister, em um dos cafés literários da cidade.

Bom, será que dá para fazer isso em Natal ou Recife? Falo de montar meu gabinete numa cafeteria descolada. Ou é apenas mais uma loucura de alguém louco por café e cafeterias?

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
Ponto de Vista

Recent Posts

COTAÇÕES DO DIA

DÓLAR COMERCIAL: R$ 5,8010 DÓLAR TURISMO: R$ 6,0380 EURO: R$ 6,0380 LIBRA: R$ 7,2480 PESO…

2 dias ago

Capitania dos Portos limita número de passageiros em embarcações de passeio nos parrachos de Rio do Fogo e Touros

A Capitania dos Portos do Rio Grande do Norte divulgou nesta quinta-feira (21), a publicação…

2 dias ago

Natal em Natal: Árvore de Ponta Negra será acesa nesta sexta-feira (22)

O Natal em Natal 2024 começa oficialmente nesta sexta-feira (22) com o acendimento da árvore natalina de…

2 dias ago

Faz mal beber líquido durante as refeições? Segredo está na quantidade e no tipo de bebida

Você já ouviu que beber algum líquido enquanto come pode atrapalhar a digestão? Essa é…

2 dias ago

Alcione, Flávio Andradde e Festival DoSol: veja agenda cultural do fim de semana em Natal

O fim de semana em Natal tem opções diversas para quem deseja aproveitar. Alcione e Diogo Nogueira…

2 dias ago

PONTO DE VISTA ESPORTE – Leila de Melo

1- O potiguar Felipe Bezerra conquistou o bicampeonato mundial de jiu-jitsu em duas categorias, na…

2 dias ago

This website uses cookies.