ESPELHO MEU… –

Eu sempre digo – em tom de brincadeira – aos meus amigos, que não gosto de olhar-me ao espelho. Primeiro, porque a vaidade nunca foi meu ponto forte, e depois porque lá eu sempre vejo um velho a fitar-me, a espiar-me. Percebo que ele resmunga, me alerta e aconselha: não se “ache”! Isso é muito fácil, porque eu nem me procuro.

Tenho, às vezes, buscado certo alguém que, mesmo vivendo uma pobreza clássica e invencível, usufruiu da condição de criança alegre, estudiosa e socialmente pura, sob o zelo e os cuidados de uma orientação paterna baseada em muito carinho e judiciosos e bem tolerados castigos.

Procuro, talvez, pelo garoto suburbano e pobre que nos seus modestos sonhos aspirava pouca coisa. Descartou a primeira delas – ser padre. Nos delírios infantis, via-se cavalgando e defendendo a lei, tal como Rocky Lane, Roy Rogers, Rex Allen, Durango Kid e tantos outros heróis de todos os meninos. Sem muita convicção, vez por outra, almejava ser o Tarzan. Menino besta, boquiaberto quando assistiu aos primeiros filmes da sua vida. Fogo na Canjica, brasileiro, exibido na rua, e O Drama do Deserto, um documentário, produção de Walt Disney, no Cinema São Luiz.

Sonhava ser militar, cantor de rádio e jogador de futebol, também.  E qual menino brasileiro não sonhou? Nos anseios mais realistas, pensava em ser guarda de trânsito, e por que? A visão de um soldado comandando e orientando carros e pessoas nos cruzamentos e sinais transmitia a ideia de poder, decisão, e a obediência de todos ao comando dos seus braços era animadora. As primeiras letras, aprendidas com a mãe e as professoras particulares que ensinavam sem remuneração.

Procuro esse menino no Grupo Escolar João Tibúrcio, no Alecrim, onde até a terceira séria primária contava-se com as exigentes e carinhosas dona Lourdes no primeiro ano, dona Antônia no segundo e dona Leonor no terceiro. Aquele bom aluno, interessado, disciplinado e atencioso com professoras e colegas, postura compartilhada pelo irmão que, embora quase dois anos mais velho, estava no mesmo nível. Um comportamento exemplar às vezes confundido por alguns colegas, que viam na boa educação um sinal de fraqueza. Eram, assim, importunados pelos arengueiros e bagunceiros, e tornados vítimas do que hoje chamam de bullying. Mas, sem medo ou violência havia reação, e as famosas ameaças do “te pego lá fora” não causavam maior temor.

Não mais almejo ser aquele moço que um dia acreditou na força dos argumentos e das palavras como armas contra a intolerância, o arbítrio e a crueldade. O jovem que se viu, por um delito de opinião, manietado por férreas algemas, fétidos capuzes, elétricas e dolorosas descargas a macular-lhe os órgãos mais sensíveis, sujeito a pauladas, socos e pontapés, suspenso em humilhantes “paus-de-arara”, à mercê de covardes algozes, ávidos por suas confissões e sofrimentos. Ou como um forçado espectador, obrigado a testemunhar, por sádicas intimidações, até piores e mais violentos martírios infligidos a outros combatentes, igualmente subjugados.

A pessoa que às vezes tento encontrar habita universos distantes, inalcançáveis, e desfila na memória alimentada por confessados escapismos e indesejáveis covardias, diferente do homem que procurei – ou desejei – ser. Com absoluta convicção, por essa pessoa de hoje, de agora, que experimenta as angústias do ocaso da vida, das certezas e incertezas de um porvir nada risonho, eu realmente não procuro. Forçado a assumir e aceitar seus achaques e recém adquiridas mazelas, prefiro, então, deixá-la ao sabor dos indomáveis e fortes ventos que sopram contra o cais, sem o auxílio e o impulso de velas que não se erguem mais.

…Haverá no mundo alguém mais nostálgico do que eu?

 

 

 

 

 

 

Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais

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