ESTADO INÍQUO – Adauto José de Carvalho Filho
“É preferível a tristeza de quem suporta a iniquidade do que a alegria de quem a comete”. Santo Agostinho
Eu já não sei em “que” e a “em quem” acreditar. Eu já não sei se há orgulho possível para o cidadão brasileiro. Tudo parece uma grande provação. A cidadania, com o atual status do poder organizado e estabelecido, da forma como a considera, passou a ser carma, não prerrogativa. As decepções nas autoridades públicas, que humilham o cidadão a cada gesto ou palavra, são os únicos pressupostos para que se avalie o Estado, com a tristeza de concluir-se que, mais que uma ficção jurídica, na melhor concepção do direito, na forma contumaz como se mostra, não considera, como o seu elemento “mater”, o cidadão brasileiro.
O Estado existe para poucos que se refestelam em atos e atitudes pouco republicanas e se recicla em seus privilégios e aberrações e, entre os poderes, uma carcaça mantida a muitas mãos e em seus desvelos, se sobressai intransponível na arte de menosprezar a sociedade e mostrá-la, até levianamente, que ela nada significa, exceto nos discursos tolos e enganosos que invadem o vazio institucional onde gravita a sociedade e falseiam a verdade a verdade para que, como vampiros, possam alimentar-se na última gota de sangue. As palavras cidadania, legitimidade, ética, moral social, entre outras, são estupradas permanentemente.
O confuso e complexo sistema jurídico brasileiro vive o ápice da incoerência e, entre gritos e espasmos, decide não punir ninguém e consegue inovar: o despacho na bacia é a nova modalidade de sentença judicial que quem decide se deve ser cumprida ou não é o meliante, não o juiz. Lógico, não é extensiva a meliantes pés de chinelo, mas às autoridades da República, que mudam as regras de acordo com as conveniências e tudo é silentemente acatado.
Por mais concorrido que seja eu não gostaria de estar no lugar da MM Ministra Camen Lúcia que, com sua postura impecável, se vê tolhida pelas trapalhadas dos seus pares, que não se entendem e se digladiam na frente dos holofotes e diante da mais cruel das realidades: no Brasil, a calhordice é resistente e os poderes, longe da harmonia constitucional, se entremelam em seus vícios e conivências. Se uma decisão judicial, prolatada por um juiz do Supremo Tribunal Federal não é cumprida e, de forma aguerrida, contestada; só subsistem dois caminhos- a desobediência ou a exação; a primeira cometida pelo Presidente do Senado e pelos membros da mesa que assinaram a recusa e a segunda, cometida pelo eminente juiz. Ambas, no mundo dos pobres mortais, puníveis na forma da lei ou, se institua a “bacia dos despachos”, ou seja, o novo instrumento jurídico nacional que, à inspiração do jogo do bicho, o que se escreve se dilui na água e, por não permanecer escrito, não vale.
Mas, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, especialista em permanência em cima do muro, pede calma e equilíbrio entre os poderes para a superação de uma crise institucional, justiça não! A OAB contribui para a desordem. A defenestrada crise, se existiu (o mundo do direito brasileiro é proselitista por natureza), conduzida por arroubos entre partes, por tratamentos desiguais entre os meliantes, e faz tempo; foi provocada por alguém e, como tal, se existe lei, por ela deveria ser punido. Renan e os membros da Mesa do Senado, por desobediência ou o ministro por exação. O que diria a OAB se um cidadão comum, não ungido pelo divinismo, se negasse a cumprir uma determinação judicial? Alguém arrisca um palpite? Como? Trata-se de uma decisão complexa entre poderes da República? O que tem o cotonete com o ouvido? O juiz, qualquer juiz, ao prolatar uma sentença, deve buscar a coerência jurídica, em especial, um ministro do Supremo e, pelo descalabro, deve ser punido, nem que seja com um puxão de orelhas. Ao contrário, puna-se o infrator.
Panos quentes não resolvem os imbróglios do Estado Democrático de Direito Brasileiro, que, longe da democracia e do direito, se dilui na descrença da sociedade que já não suporta tantos desmandos e descasos com a coisa pública. A sociedade exige o mínimo de seriedade, do juiz e do Presidente do Senado e gandulas, que a lei seja cumprida e prevaleça a justiça. Será que a conta da cidadania brasileira já não é alta o suficiente e, com alto tributo, é obrigada a presenciar uma rinha entre os poderes republicanos, não pela justiça, mas pela acomodação de “pitis” de Calheiros, Melos e Mendes, que, segundo observações recentes (basta consultar qualquer pasquim) se especializaram em afrontar a sociedade e a desmerecer qualquer manifestação de respeito e ainda se calar? Sinceramente, independente da arrumação que será feita em confronto com o direito e as liberdades, os poderes republicanos mostraram o que são: meros fantoches nos palcos da política brasileira, onde a lei é cobrada do cidadão e a democracia é para as graças das autoridades.
E vou parar por aqui senão quem vai ser punido serei eu, não por negar verdades, mas por não ser juiz ou senador e, quais Deuses, impor seus humores e horrores e as culpas recairão em quem não achar graça em ver a rês pública ser transformada em vaquinha de presépio… Desculpem-me, esqueci que as vaquejadas foram proibidas. Como? Continuam a acontecer como antes no quartel de Abrantes? Sei lá, perguntem aos Calheiros, Melos e Mendes, os mais renomados especialistas em despachos em bacias. A crise entre os poderes da República Federativa do Brasil, em sua versão epocler, lembrou-me certo soldado de polícia de minha cidade natal, a cosmopolita Mossoró (gostaram do trocadilho?) nos idos dos anos sessenta, que conduzindo a ordem judicial ia até o meliante e alto bradava: teje preso!
– O meliante retrucava: tá aqui que eu vou…
– E o soldado não saia por baixo: tá aqui que eu levo.
Parece-me que as coisas não mudaram muito pelo Brasil de meu Deus e de muitos deuses e olhem que o desenrolado soldado cumpria ordens de prisão de juízes de primeira instância…
…Vixe.
Varei!
Adauto José de Carvalho Filho – AFRFB aposentado, Pedagogo, Contador, Bacharel em Direito, Consultor de Empresas, Escritor e Poeta.
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