Das internações por SRAG em 2020, 36% foram de idosos, com mais de 60 anos. Já os pacientes com menos de 2 anos responderam por apenas 10% dos casos.
Testes negativos e aguardando resultado
Outro dado que chamou a atenção dos pesquisadores da Fiocruz foi o grande número de testes negativos para outras gripes, como Influenza A, o tipo mais comum. O índice chegou a 91%. Segundo os especialistas, isso indica que o motivo da SRAG é outra doença, nova.
“Chama a atenção a alta negativação dos testes laboratoriais de SRAG na vigilância, tanto historicamente, como em 2020”, afirmam os pesquisadores. “A negativação dos testes alcançou 91%, um nível antes não encontrado.”
Além disso, não há testes disponíveis de Covid-19 para todos os pacientes. E mesmo entre os que foram testados, muitos ainda aguardam o resultado.
Professor mostra ano ‘fora da curva’
O professor de estatística da UFRN Marcus Nunes analisou os dados do Infogripe, da Fiocruz, e fez dois gráficos, mostrando como o número de casos em 2020 está em um patamar muito acima do restante, inclusive 2016, quando houve o surto de H1N1.
Todos os meses, ele escolhe um tema para fazer uma análise estatística e mostrar para seus alunos na faculdade, que também é publicada em seu blog.
O professor diz que viu que não havia testes suficientes no Brasil e resolveu buscar os dados de problemas respiratórios para conferir se havia subnotificação da Covid-19. Depois de analisar os dados do Infogripe, concluiu que essa probabilidade é muito alta. “O gráfico mostra claramente que 2020 é um outlier (fora da curva)”, diz.
Nunes publicou também um site com as curvas para cada estado, mostrando a diferença de número de casos entre cada ano. Em estados como RJ, MG e CE, a discrepância é ainda maior.
Especialistas apontam subnotificação
Antonio Bandeira, epidemiologista, infectologista e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia, diz que o alto número de internações deixa clara a subnotificação, assim como o perfil das vítimas. “[O fato de ter mais idosos] é por causa do Covid-19. Não tenho nem dúvida.”
“A SRAG é um quadro com maior gravidade respiratória associada a manifestações virais. Ela não vai diferenciar que tipo de vírus é de acordo com os sintomas, não. Ela pode ser causada por qualquer um desses vírus, Influenza, Covid, H1N1. Em tempos normais, sem pandemia, ela geralmente reflete casos de Influenza, porque dentro desses vírus é o mais comum ano a ano. Mas a Covid-19 reproduz um quadro respiratório. Então esse número deve refletir as duas coisas juntas.”
“Não tem como saber sem testes o que é cada um. No início do ano, na Bahia, tinha muito mais Influenza dando nos testes. Agora não. Tem muito mais Covid do que Influenza. Só que como a demanda de Covid ficou muito grande, a gente tem que esperar para mostrar os resultados de tudo isso” , afirma.
Paulo Inácio Prado, que trabalha com biologia quantitativa e é integrante Observatório Covid-19, grupo voluntário de pesquisadores, diz que o estudo da Fiocruz tem uma importância muito grande. “Eles foram os primeiros a perceber que estavam detectando provavelmente os casos de Covid”, diz. “Esses dados confirmam a hipótese da equipe da Fiocruz de que a gente estava tendo um aumento muito importante dos casos de SRAG e que isso se deve muito possivelmente à Covid-19”
“A grande pergunta é por que a gente tem tantos casos ainda não testados, se entre os testados a gente uma taxa de 70% para o Covid?”, questiona. “Acho importante distinguir duas coisas diferentes que afetam esses dados. Uma é o atraso de notificação. Uma parte já aconteceu e vai ser registrado. A segunda é a subnotificação mesmo. Significa que o sistema não está conseguindo notificar todos os casos.”
Tulio Batista Franco, sanitarista da Universidade Federal Fluminense, diz que esse fenômeno da subnotificação é visível no país todo.
O especialista diz que, como não há a testagem adequada, “cada um fala o que quer”. “Não se está conseguindo dar o diagnóstico correto para as pessoas. Você não tem o teste para se contrapor ao número do governo.”
Sérgio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, também diz que o número “não é normal”.
Para Patrícia Canto, pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública, com uma notificação baixa, a estimativa da mortalidade da doença também não é real. “Você só está testando os casos graves. Se você tivesse o total, alteraria. Então, com certeza, a taxa de mortalidade cairia se você tivesse uma testagem maior, porque você aumenta o número de pessoas infectadas.”
“Outra coisa é que a gente tem um impacto mais sentido nos profissionais de saúde. Então o profissional de saúde que está acometido da doença, ele precisa do exame para poder retornar ou para manter a sua quarentena. A questão dos testes é fundamental”, diz. “O fato de a gente não testar a população traz pra gente um subdimensionamento dos números. Então se a gente pensa que, cada um desses casos contaminou pelo menos 2, 3 [pessoas], se não forem mais, a gente tem que multiplicar por pelo menos 3 o número de infectados na população.”
Sem saber o número real de infectados, o planejamento dos sistemas de saúde fica prejudicado, segundo ela. “Se a gente consegue avaliar que, em determinados locais, você está com um número maior de casos, você drena melhor os seus sistemas de vigilância e de ações de serviços de saúde e até de equipagem dos dispositivos hospitalares. Você pode enviar médicos. Você acaba sabendo isso pela gravidade dos casos. Se você tivesse uma dosagem mais ampla, uma testagem mais ampla, você talvez pudesse se antecipar à gravidade dos casos e aí você consegue manejar melhor a questão de leitos, de respiradores ou mesmo de profissionais de saúde.”
O que preocupa, segundo a especialista, é o impacto desse quadro. “O problema é, em pouco tempo, os sistemas ficarem sobrecarregados e não termos leitos de UTI e respiradores/ventiladores mecânicos para o grande número de pacientes que se avolumam ao mesmo tempo. Os serviços são estruturados para a população em situações normais, não para situações de pandemia, como estamos vivendo agora. E a gente não pode esquecer que as outras situações continuam acontecendo. As pessoas ainda infartam, as pessoas ainda têm apendicite, as pessoas ainda têm infecções bacterianas. E agora estamos começando a época do ano em que a gente tem as doenças respiratórias sendo mais prevalentes também. Então a gente vai ter uma sobreposição da pandemia, que, por si só, já esgota o nosso sistema de saúde, sobreposta às outras doenças que a gente espera encontrar na população, em especial nessa época do ano.”
“As pessoas ficando mais em casa, a gente tende a protegê-las de exposições a esses vírus respiratórios de um modo geral, tanto que essa é uma das principais estratégias no combate a essa pandemia. Com isso, você reduz, por exemplo, essa transmissão para crianças. As crianças não estão indo às escolas, não estão indo às creches. Com isso, você tende a diminuir essas infecções respiratórias”, afirma.
“Uma outra coisa que a gente espera, seguindo o perfil dos outros países que nos antecederam à pandemia, é que as condições mais graves da doença da Covid 19 aconteçam nas pessoas com comorbidades e com idades mais elevadas, com pacientes acima de 60 anos, aumentando essa internação, então, nessas faixas etárias. Isso tem a ver com o perfil da doença, e a redução de infecção nas crianças muito provavelmente tem relação com o fato de elas estarem mais em casa”, diz Patrícia.