EU, AS COMPRAS E O ÁLCOOL –
Amo fazer compras. Não estou falando em sapatos ou roupas. Falo em mercado. Moramos em Bauru, SP, quando casamos. Todo sábado íamos ao supermercado. No começo estranhávamos. Não tinha a farinha de mesa fininha que estávamos acostumados, nem farinha de milho para fazer cuscuz. Meu pai nos visitava com frequência e levava um isopor com carne-de-sol, feijão verde, rapadura… Amávamos isso.
Após quatro anos e o fim do mestrado, voltamos para Natal. Tivemos filho, outro filho, alguns empregos e a correria habitual da vida adulta. Muitas coisas mudaram, outras não. As listas de compras, ainda feitas em papel, me fazem ir ao supermercado toda semana. Como antigamente. Sei exatamente em qual corredor encontro cada produto. Sou metódica.
Na lista de compras tem as coisas essenciais e os mimos. O biscoito que um filho gosta ou a Nutella que o outro prefere. Flávio gosta deste chocolate, eu deste queijo e assim por diante. Ao chegar em casa organizo a despensa por ordem de necessidade e data de validade. Os produtos que vão para a geladeira são lavados e…
Espera aí! Tudo mudou.
As compras AGORA são feitas por aplicativos. Agendo data e horário de entrega. Não escolho minhas frutas com o carinho que costumava. Nem olho para o desconhecido ao lado e exclamo: “Nossa! Como subiu o preço!”. Não organizo mais as compras na esteira do caixa porque gosto que tais produtos sejam empacotados juntos e isto me facilita a organização. Hoje, recebo a maionese junto com os biscoitos e descobri que não infarto com isso.
Com a pandemia, TUDO É LAVADO!
Recebemos as compras na garagem do prédio. Em frente à nossa porta, tem um tapetinho com solução de água sanitária. Tiramos os sapatos. Eles não entram mais em casa. São “sapatos para a rua”. Abro a porta com o cotovelo, passo álcool nas mãos e nas mãos de meu esposo. Cheiro o álcool para saber se não perdi o olfato. Abro a torneira. Lavo as mãos. Lavo a torneira. Lavo o frasco de álcool. Passo álcool nos cotovelos, nas mãos, nas maçanetas, na torneira. De novo em meu esposo. Um pouco em mim também.
Começo a lavar as compras.
Tem o espaço das compras que serão lavadas e as lavadas. Entre esses espaços pergunto a Flávio e ele a mim: até quando será assim? A resposta é o silêncio da dúvida.
Eu lavo, ele seca, eu guardo. Ele vai tomar banho. Continuo na cozinha. Passo desinfetante no chão. Passo também na sala, no corredor. Volto para a cozinha. Borrifo álcool nas prateleiras da despensa. Não é necessário, ele me diz, já lavamos tudo. Eu sei, mas não custa nada prevenir. Cheiro o álcool novamente: ainda tenho olfato. Passo álcool em mim, nas prateleiras, nas compras já guardadas, nas maçanetas, no frasco de detergente, no frasco de álcool. Coloco a esponja no micro-ondas.
Para quê? Ele pergunta. Para matá-lo, respondo. Ele não questiona. Verbalmente. Seus olhos denunciam que me recrimina. Prefere não comprar briga. Vou continuar fazendo. Ele sabe. Passo álcool na porta do micro-ondas, de novo em mim. Tiro a máscara. Não! Esquecemo-nos de jogar fora as sacolas das compras. Devo colocar outra máscara? Coloco outra. Lá vou eu abrindo a porta com o cotovelo, passar álcool, pisar no tapetinho.
Ufa! Enfim, terminou.
Coloco roupas na máquina. Cuidado ao tirar a camiseta! Não pode encostar no rosto. Vou tomar banho. Enquanto isso, Pretinha fica deitada olhando este deselegante ballet acontecer. Parece que se distrai. Deve imaginar qual o motivo para estarmos assim. Peguei-me pensando se ela usaria máscara. Pirei. Eu explicando a ela os números da pandemia. Ela olhando para mim com seus olhos esbugalhados de Yorkshire fazendo de conta que entende. Eu com preguiça de fazer compras. Ou preguiça de tudo que acontece quando as compras chegam. Tenho cheiro de água sanitária nas mãos.
Oba! Tenho olfato!
Bárbara Seabra – Cirurgiã-dentista e Professora universitária