EU, MEU IRMÃO E A ELA –
“Pai, neste dia em que se comemora o aniversário de Vosso Filho, venho de coração aberto, diante de toda minha família, confessar algo que busquei em livros, fatos, qualquer coisa que me convencesse de Vossa existência.”
“Hoje, eu não tenho a menor sombra de dúvida dela. Aos quase 70 anos confirmei, de forma indubitável, que a Vossa existência é real, pois ninguém pode suportar as dores físicas e psicológicas, que esta doença impõe, sem a Vossa mão como muleta.”
“Eu estou feliz em fazer esta reunião com a família, porque é a oportunidade de reunir a todos e expressar o que eles significam para mim, nesta provação que, como dá para ver, é dolorosa.”
“Mesmo assim eu nunca perguntei: ‘Por que eu?’. Sempre argui: ‘Por que não eu?’. Se essa foi a Vossa vontade, que assim seja!’”
O texto acima foi ditado pela voz metálica de um computador, reproduzindo o pensamento do meu irmão Severino Marques Sousa, no último Natal.
Severo, como nós o chamamos, é médico formado pela UFRN, coronel da Aeronáutica e o terceiro dos seis filhos de Laura e Manoel. Pai de três homens e duas mulheres, em dois casamentos, ao se aposentar resolveu cursar Gastronomia, sendo laureado como o melhor aluno da turma.
Como prêmio, ganhou um estágio em Salamanca, Espanha, e ao retornar a Natal, abriu um bistrô temático em sociedade com uma colega de turma. A proposta gastronômica caiu no gosto de determinado segmento do público consumidor. Estava feliz e exultante com o sucesso do empreendimento.
Aconteceu, de o destino lhe reservar uma dura provação. Severo foi acometido por uma doença cruel e devastadora chamada Esclerose Lateral Amiotrófica, conhecida pela inofensiva sigla ELA. Foi o início de sua Via Crucis.
Ele é prisioneiro do próprio corpo há dois anos. Apenas bate as pálpebras com certo esforço, mas mantém a mente lúcida, processando racionalmente seus pensamentos e conceitos da vida. Como médico, está ciente do que ocorre consigo.
Comunica-se com o exterior através do olhar, focando-o em letras contidas numa tela de computador, com as quais forma palavras que traduzem o seu pensamento sagaz e inteligente.
Foi com voz artificial que Severo comunicou aos familiares e amigos, num depoimento deveras comovente, a sua aceitação da existência de Deus e do Seu Filho, Jesus Cristo, no dia em que comemoramos a sua chegada ao mundo.
Embora, sendo oriundo de uma família católica e respeitando a escolha dos seus filhos pelos ensinamentos de Cristo, mantinha-se, ele mesmo, um cético quando se discutia a existência de Deus. O convívio com a doença resultou no desabafo acima.
Eu tornei pública a privacidade de Severo, porque acredito que esta manifestação de fé amenizará a dor de portadores do mesmo mal que o atormenta. Certamente, ele entenderá a minha atitude.
José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro civil e escritor – [email protected]