Formalismo e realismo


Marcelo Alves Dias de Souza

Já faz algum tempo, eu escrevi, em um outro jornal da cidade (o saudoso Diário de Natal), sobre a célebre dicotomia, existente na ciência jurídica, entre direito natural e positivismo jurídico. Hoje vou tratar de outra dicotomia que, embora menos conhecida, também é muito importante para o estudo filosófico do direito: formalismo e realismo.

Primeiramente, o debate aqui gira em torno da questão de ser o direito uma ciência autônoma, completa, com seus próprios axiomas e métodos de raciocínio e suficiente por si só. Com fundamento nessa autonomia e completude, os formalistas acreditam que o resultado de qualquer disputa/questão judicial está, na letra da lei, potencialmente previsto. Dada certa legislação (ou, sendo mais abrangente, certo “direito”), com seus conceitos e comandos, e dada certa categoria de fatos aos quais a legislação se aplica, nós podemos antecipadamente afirmar como um juiz ou tribunal decidirá, se corretamente aplicada a legislação ao fato. Formalmente, sem recorrer a outros postulados, a “literalidade” da lei decide o caso.

Muito embora hoje em dia ser chamado de formalista no direito soe quase ofensivo, o fato é esse tipo de visão, em defesa da “literalidade da lei”, teve, no decorrer da história, muitos defensores. Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), por exemplo, lembra que, já na antiga China, uma famosa escola de pensamento jusfilosófico – a dos chamados legalistas, inspirados pelos escritos do aristocrata ateísta Han Fei (280-233AC) e de outros defensores do irrestrito poder estatal – deliberadamente defendeu a supremacia da legislação baseada em sofisticados argumentos formalistas. Convém lembrar, também, como mais um exemplo, a conhecida escola da exegese – capitaneada, entre outros, por Demolombe, Bugnet e Aubry –, fruto do surgimento do Código de Napoleão, para a qual o famoso Código representava a única fonte de direito, um todo perfeito e sem quaisquer lacunas, devendo o jurista pesquisar o direito vigente tão-somente nas regras ali previstas. Assim, essa escola negava aos julgadores a possibilidade de recorrer a outras fontes para a solução dos casos concretos. Formalistas existem até hoje, alguns até extremistas, para quem a lei é tudo e algo mais.

Os formalistas/legalistas, sem dúvida, colocam o julgamento (a decisão judicial) sempre à sombra da legislação (de uma legislação que seria “perfeita e acabada”). Talvez até fosse o ideal, dando ao direito uma objetividade sempre desejada, mas, por inúmeras razões, como lembra Ronald Dworkin (em “Levando os direitos a sério”, Editora Martins Fontes, 2002), isso não pode ser plenamente concretizado na prática.

Pode-se dizer que é contra esse “formalismo” que se bate o realismo jurídico, um tipo de pensamento gerado, sobretudo nos Estados Unidos da América, em períodos diferentes, por dois grupos de juristas distintos. Os realistas, como explica Paulo Nader (em “Filosofia do direito”, Forense, 1995), adotam “um método empírico de investigação científica em que se dá preeminência à realidade concreta e se rejeita a presença de comandos ideológicos” e valorizam “a prática judicial na definição de direito”, com um “papel secundário atribuído às disposições legais”.

A ideia-chave do realismo jurídico está na consagrada frase de Oliver Wendell Holmes Jr., considerado um precursor do movimento na virada século XIX para o XX, constante do seu livro “Common Law” (escrito em 1881): “a existência do Direito não tem sido lógica; tem sido experiência”. Com o segundo grupo de “legal realists”, que aparece ao longo dos anos 1930, avança-se nos trabalhos dos antecessores. Segundo Phillip J. Cooper (em “Public Law and Public Administration”, F. E. Peacock Publishers, 2000): “Primeiro, eles sugeriram que o processo de elaboração da decisão judicial é importante para a compreensão do que é o direito e por que os juízes são importantes. Um verdadeiro céptico, Jerome Frank argumentou que uma decisão judicial é mais do que um produto da regra legal aplicada a um conjunto de fatos específicos. Os processos através dos quais nós determinamos os fatos, mais notadamente a ‘fight theory of law’ e o sistema do júri como atualmente utilizado, acrescentam diversas variáveis que afetam a determinação final dos fatos em um caso. Frank agradeceu a outros, como Llewellyn, que sugeriram que a interpretação das normas era muito mais complicada do que um simples e claro processo analítico. Em segundo lugar, eles arguiram que os juízes tomam decisões numa grande variação de fundamentos, somente alguns dos quais são conscientes, racionais e analíticos. Outros elementos da elaboração da decisão são mais complexos e menos óbvios”.

Agrupando as várias manifestações, o já citado Phillip J. Cooper assim resume o pensamento do “legal realism”: “O Direito consiste em um conjunto de decisões tomadas por pessoas no poder. Essas decisões não são necessariamente racionais. Os juízes têm preferências e valores, e suas decisões, bem ou mal, são afetadas por características herdadas ou adquiridas que eles trazem para a magistratura. O comportamento dos juízes também é afetado, especialmente em tribunais, pelo fato de que tais cortes são órgãos colegiados que operam com toda a força e todas as fraquezas impostas pela dinâmica de pequenos grupos”.

Claro que há aqueles que não se encaixam nos “moldes” (bastante sectários, diga-se de passagem) do formalismo ou do realismo. Eles enxergam o direito por uma perspectiva mais variada, acreditando, a meu ver acertadamente, que a verdade está a meio caminho entre os dois polos.

E você, caro leitor, já parou para pensar se está mais para um formalista ou para um realista?

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL E Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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