FUI ÀS COMPRAS –

Pensem em algo complicado ir às compras em tempo de pandemia. Pois bem, após 50 dias de confinamento eu resolvi pôr os pés fora da calçada para reabastecer a despensa e, aproveitando a oportunidade, conferir se o mundo exterior continuava o mesmo.

Muni-me de todos os cuidados definidos pelas orientações médicas: máscara, luvas, boné, óculos, braços e pernas protegidos, botas de cano longo e tubo de álcool em gel ao alcance da mão. Pronto para a luta, fui o primeiro a pisar no supermercado prefixado, enquanto ainda abriam as portas.

Dei logo de cara com o segurança e, antes que ele solicitasse, ergui os braços tentando evitar ser confundido com um assaltante disfarçado. Em seguida, levantei a camisa e girei em torno de mim para comprovar estar desarmado.

Em casa, na noite anterior, de posse da planta baixa do local das compras, tracei um roteiro para ser cumprido à risca. E assim agi. A passos largos, sem me dar conta do tempo, estava diante da última gôndola na programação estabelecida, quando um diligente funcionário me tocou o ombro e perguntou: Posso ajudar, senhor?

Reconheço que minha reação foi desproporcional ao susto. Ao ser tocado por trás imaginei estar sendo infectado pela Covid-19, e revidei com a mesma intensidade se caso estivesse diante de um ataque mortal do vírus. De costas, sem me dar conta da fragilidade do agressor, movido apenas pelo instinto de sobrevivência, empurrei com força anormal o ente camuflado, gritando: Afaste-se! Não me toque!

Lembro-me de ouvir uma voz aos gritos, dizer: Ele enlouqueceu!… Ele enlouqueceu!… Enquanto outra a acompanhava no mesmo tom: Cuidado! Ele é portador do coronavírus… E já chegou ao pior estágio de loucura. Uma terceira corroborou: Este senhor não podia estar aqui. No mínimo, confinado num manicômio. Dei-me conta do ocorrido, somente ao ver pessoas acudindo uma moça estatelada no chão da loja.

Ninguém tocou em mim, nem nas compras. Acho eu, por conta do diagnóstico receitado pela pessoa garantidora de que o vírus causava alienação. Recomposto, percebi um funcionário chamando-me a atenção sem de mim se aproximar. Falou para eu lhe acompanhar até a recepção. Quis largar o carrinho, mas ele insistiu que eu o levasse comigo. Não entendi o porquê.

Envergonhado, eu o segui notando as pessoas abrindo passagem para nós. Conhecidos meus observavam a cena, embora sem identificar o covidiano maluco. Ao cruzarmos os caixas, perguntei: Onde quitarei a compra? Ouvi como resposta: Não se preocupe com pagamento. Peço-lhe apenas o favor de se retirar do recinto, caso contrário chamaremos o SUS ou a Polícia. O senhor escolhe! Preferi arredar pé.

Fui acompanhado pelo segurança até o meu carro, dei a partida e segui para a segurança do lar. Em casa, a mulher perguntou: O que achou sair de casa, após tanto tempo encarcerado? – respondi: Tranquilo! Sem sobressaltos!

De uma coisa eu tenho certeza: não fui reconhecido. Caso contrário, seria manchete de jornais e de noticiários nas TVs, o que não ocorreu. Preocupou-me, sim, vídeo postado nas redes sociais mostrando o conflito, sobre o qual meu filho comentou: Se eu não conhecesse seu receio de sair de casa, pai, juraria que é o senhor.

Nada mais foi dito. A compra que eu fiz, considerada contaminada pelo gerente, foi de custo representativo. Para alguém carente de movimentação, até que me fez bem a aventura. Se a pandemia persistir, é um caso a pensar outras comprinhas…

 

 

José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro e Escritor

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Uma resposta

  1. Nestes momentos que se apresentam tão anormais em relação ao cotidiano que vivemos ao longo do tempo, uma crônica que faz rir é sempre muito bem-vinda.

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