GATOS –
Os gatos são bichos detestáveis para quem não gosta e adoráveis para quem gosta deles.
Ariscos, carinhosos, individualistas, companheiros, elegantes, astuciosos, brincalhões, temperamentais, silenciosos, curiosíssimos, ágeis, preguiçosos, indóceis, felinos por natureza – com tudo que isso significa. Não sei se gostam de gente ou da casa. É discussão antiga na qual não me meto.
Há quem diga que o encher e secar de suas pupilas segue o movimento das marés. Se é preto e cruza a estrada… Deveriam ser todos inimigos mortais dos cães, mas há defecções, diversos são amigos de vida inteira. Parece que até alguns pássaros e ratos estão ficando diplomatas o suficiente para entrar na roda e permanecer vivos. Novos tempos.
O gato da casa chegou novinho, adotado, depois de um abandono. Estava no interior, numa dessas instituições que acolhem animais que sofrem maus tratos. Mediante uma pequena taxa, vieram trazer já vacinado e tudo.
No princípio pensou-se que era gata, pois tinha três cores no pelo. Em pouco tempo revelou-se macho. Por precaução, mandaram castrar logo. A rua – mesmo aquela fechada com portão, em condomínio – era uma tentação para quem veio dela. Foi vivendo mezzo caseiro mezzo mundano.
Vira-latas com boa dose de genes angorás, foi se espalhando pela casa inteira, dominando espaços, aconchegando em cantinhos, no colo das pessoas. Mimoso seria uma boa palavra para definir o sujeito.
Na hora de comer, mesmo que houvesse ração no prato, esperava que colocássemos uma porção nova sobre a antiga, senão não comia. E queria serviço completo, que enchêssemos a tina da água de beber. Um folgado profissional.
Não podia ver um computador ligado, ficava ali ao lado, sobre a mesa, tentando entender aquele jogo de teclas, digitação, sons e coisas se mexendo na tela iluminada. Virava uma espécie de assistente compulsório de quem estivesse trabalhando, ensaiando aqui e ali uma tentativa de tocar algo mais buliçoso.
Belo dia, o vizinho trouxe uma gata para sua casa. Branquinha, com bons traços persas enfeitados de pedaços pretos no pelo liso. Também chegada a perambular pela rua segura e, em pouco tempo, visita sem qualquer cerimônia na casa do gato.
Vinha fazer as refeições como se fosse a coisa mais natural do mundo. Logo estava montado um cenário de casamento por interesse. Não sabíamos se tinha nome, passamos a chamá-la de Branquinha mesmo.
Virou agregada da casa, entrando e saindo quando bem entendia. Claro, com o amparo do rapazinho garboso. E nós fazíamos farra dizendo que aquele sujeito, mesmo castrado, conseguiu arranjar uma pensão alimentícia para pagar.
Não demorou, o amor brotou entre aqueles dois animais. Algo superior, nobre. A gata, mesmo sem estar no cio, permitia as investidas gravadas no instinto, mas totalmente infrutíferas do gato – que já não tinha o equipamento necessário para aquela ação. E fazia seu papel de fêmea com uma altivez rara.
De vez em quando protagonizavam o belíssimo ritual de acasalamento da espécie, faltando apenas a gritaria, por razões óbvias. Até que ele se enfezava pela sua própria incapacidade e saia aborrecido para outro lugar – imagino que esbravejando na linguagem dos gatos. Ela o seguia, miando carinhosa com aquele tom de ronronar, compreensiva, cúmplice. Dando a ele a certeza de que havia algo mais importante entre eles do que aquele não sexo consentido.
Havia telhados, toldos, árvores e postes pelos quais qualquer gato poderia entrar e sair da casa. Mas aquele sujeitinho tinha lá sua porção nobre e metida a besta. Quando resolvia sair para a rua ou voltar para dentro, miava diante do portão até que um de nós lhe fosse dar passagem. Se não houvesse ninguém em casa, aguardava pacientemente a chegada de alguém.
Abusado, começou a chamar às seis da manhã, de madrugada… Fomos fingindo a surdez conveniente e didática e o malandro alinhou os horários dos seus compromissos com os nossos, absorveu um pouco da etiqueta necessária para uma boa convivência interesseira.
Cínico, sem-vergonha, vivia trepado em árvores, matutando para se tornar adulto, caçar seu primeiro passarinho. Mas pedia ajuda para entrar e sair de casa!
Ainda continuava levando uma sova vergonhosa dos voadores, não obtivera nenhum troféu para se vangloriar. Era apenas um jovem aprendiz de feiticeiro.
Também eram hilárias suas tentativas desajeitadas de caçar borboletas e outros insetos que circulavam pela rua muito arborizada. Diante dos dribles de quem sabe voar, talvez tivesse mais resultado nos saltos ornamentais, enormes e engraçadíssimos, naquela sem-cerimônia dos inocentes que não temem o ridículo.
Um dia, foi até quase o limite do portão da avenida, se esgueirando naquele movimento mortal dos felinos. Ia atacar um pombo pelas costas e, na hora do bote, um carro passou e provocou o voo da presa. Ele ainda deu um belo voo de goleiro, com as patas abertas – unhas afiadas à mostra – mas caiu de maduro, com a sensação da rede balançando atrás de si. Essa foi por pouco. Estava claro que o mecanismo da caça estava quase no ponto.
Um desafio o aborrecia particularmente: enfrentar o gato amarelo, vagabundo profissional, forte, violento, desabusado, mundano com diploma, que invadia a região e tinha natural interesse por Branquinha. Até ali, o estranho contava com a antipatia de todos os moradores.
Era ainda uma briga desigual, mas nosso rapazola estava se especializando. Não demoraria a demonstrar que era o dono do pedaço para o invasor. O diabo é que Branquinha dificilmente iria resistir aos encantos plenos do outro quando chegasse a hora de acasalar, até para cumprir a lei da natureza.
Não raro passava o dia sumido, certamente resolvendo questões particulares, construindo sua vida no ambiente onde não cabem humanos. Ora, claro, os gatos são interesseiros, autossuficientes, egoístas! Só nos procuram quando precisam de alguma coisa.
De vez em quando, ele sentia solidão na casa enorme. Vinha de mansinho e miava com delicadeza diante da porta do quarto. Queria entrar, queria apenas companhia. E se acomodava no seu cantinho ou no parapeito da janela, vigiando o mundo lá em baixo, com a visão panorâmica que tínhamos do alto da colina.
Às vezes olhava para mim com aquela cara de mané que todo gato tem. E eu me perguntava o que um bichano pensa – se é que pensa. Como será que eles nos enxergam? Gostaria de poder entrar na cabeça de um deles e ter outra visão do mundo.
Gostaria de ter a vida que ele tinha. Era um gato feliz, tenho certeza. E todos nós da casa fazíamos um pouquinho para compor essa felicidade, exatamente por que ele devolvia na mesma moeda.
Bichos sabidos são os gatos. Nunca miam à toa. Conhecem o valor do silêncio. E dormem muito para, no seu escuro particular, passar a vida com menos estresse. Basta ver como se esfregam em nossas pernas.
Heraldo Palmeira – Produtor Cultural
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