HISTÓRIA E ESTÉTICA DE UM BEATO URBANO: O PROFETA GENTILEZA –
Rio de Janeiro, manhã ensolarada, dezembro de 1969, o ônibus para defronte ao Campo de Santana, antigo Ministério da Guerra, indo para a Praça Mauá, centro da cidade. Eu adolescente estava nele seguindo, para assistir a aulas em um curso de Inglês, desde o bairro em que eu residia, sentava-me no segundo banco da direita. O motorista fala com alguém de fora assim que a porta de correr se abre: “Entra, profeta!”
Assim vejo adentrar no coletivo pausadamente uma figura inusitada para mim, parecia familiar aos demais passageiros. Um senhor de olhos claros, sorridente, de longos cabelos e barba brancas, vestia bata alvíssima, o imaginei um desses beatos, tal qual o Santo Conselheiro de Canudos, só que em vez de cajado segurava uma plaqueta com dizeres em caixilhos pintados, letras encostadas que não consegui decifrar, parecia escrita do antigo Egito. O profeta fez gesto de cumprimento aos que estavam atrás no veículo e assentou-se no primeiro banco. Indagou ao motorista se a família estava bem, que respondeu sobre a piora do estado de saúde de uma filha. O profeta de pronto, diz com voz suave e rija, que entendi bem: “Nada haverá de ficar pior do que está, faça o que é de melhor, dê atenção a ela, que ficará bem!”. Seguiu-se mais um diálogo não perceptível pelo barulho.
Passaram-se cerca de dez minutos, chegamos à lateral da Candelária, o profeta se levantou e avisou para descer. O motorista cuidadosamente encostou o ônibus na parada, e agradeceu ao bondoso beato pelos conselhos. O velho antes de descer virou-se para nós, passageiros, e citou o bordão que celebrizou aquele homem simples: “Não esqueçam de praticar: Gentileza gera gentileza!” – Desse modo conheci o profeta Gentileza de tantos seguidores e admiradores, dentre eles, a cantora Marisa Monte, que compôs a música Gentileza, a vida é um circo..
Em seguida, guardei o comentário imprevisto que disse o motorista ainda sobre o profeta: “Ele ficou assim depois do incêndio do circo!”
Um senhor sentado ao lado dizia em voz alta mais detalhes da vida do beato urbano Gentileza. Novas idas ao curso e mais vezes via o profeta pelas calçadas alevantando a plaqueta, enquanto uns riam outros assustavam-se, tal qual um “doidarrão pio”, da expressão primeira de Euclides. Anos seguintes, pelos jornais, interessei-me pela história, passei a conhecer o imprevisto da história de José Datrino, esse o nome do profeta que, desde menino, repetia “trazer consigo premonições sobre sua missão na terra”. O tal circo, era o Gran Circus Norte-Americano, fazia enorme sucesso nos subúrbios. Numa tarde de dezembro de 1961, sob a lona estavam centenas de crianças em alegria contagiante com as diabruras dos palhaços, no lado de fora, o inesperado, um rapaz que fora despedido do circo, despejou uma lata de gasolina num canto da lona grossa de algodão engomada com parafina, combinação altamente combustiva. Em menos de cinco minutos tudo aquilo virou um cenário de horror. Mais de 500 pessoas morreram, cerca de 70% eram crianças. Em meio ao inferno, um dos elefantes rompeu parte da rígida lona esfogueado, abrindo caminho para muita gente se salvar! Passado algum tempo, folheei um livro no qual era abordado o episódio proficuamente retratado pelo jornalista Mauro Ventura, intitulado O espetáculo mais triste da terra.
Desse dia em diante, José Datrino passou a visitar sobreviventes e parentes das vítimas, para consolá-las, aconselhá-las. Dizia do sentido das palavras Gratidão pela vida, e Gentileza, apesar do infortúnio, possivelmente causado pela razão da discórdia humana como o desastre teve princípio. Iniciou sua jornada de penitência como peregrino, tornou-se rotina do Profeta Gentileza, mas não ia longe, se ateve pelas avenidas do centro do Rio de Janeiro. No livro constava que no fim dos anos 70, Gentileza esteve perambulando na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, onde vivia parte de sua família, certo dia chegou a ser destratado por jovens estudantes. Logo retornou ao Rio de Janeiro, onde passou a pintar com sua caligrafia singularíssima e marcante estética a sua obra nas pilastras do extenso viaduto do Gasômetro, em dizeres ensinava: “Só com Gentileza superamos a violência que deriva do capeta-capital”; noutro dístico lia-se “Não usem problemas, não usem pobreza, usem amor e gentileza”. No fim dos anos 80, um casal potiguar ofereceu-se para levar o Profeta de carro para conhecer o Nordeste, onde chegou a ser visto com seu hábito peregrino, sua plaquinha e suas vestes, em Mossoró, Fortaleza, Natal, João Pessoa e Recife.
O profeta morreu em 1996, em Mirandópolis, Minas, aos 79 anos. Seus desenhos nas paredes de suporte do viaduto foram vandalizados, o município pintou de cinza, e posteriormente revitalizados. Artistas, estudantes, jornalistas fizeram protestos e arte cada qual a seu modo. Em breve tempo Gentileza passou a ser reconhecido. O profeta virou personagem na novela Caminho das Índias, representado pelo ator Paulo José. Gentileza virou tema de enredo da Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, em seu mais festejado desfile, autoria do carnavalesco Joãozinho Trinta. O Profeta Gentileza, um pregador urbano brasileiro, que um dia o conheci no trajeto do ônibus Mauá 241, tornou-se mais um dos nossos mitos contemporâneos.
Quanto ao circo, aí é outra história, que desenrolarei em tentativa de associação histórico-urbana, no meu próximo modesto livro sobre messianismo, beatos e Canudos.
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