INDIVIDUAIS OU COLETIVAS? –

​“Todas as pessoas, desde os primeiros anos de vida, encontram-se frequentemente em situações nas quais devem tomar uma decisão. Não há dúvida de que a frequência e a importância das decisões a serem tomadas variam enormemente de acordo com a idade e com as responsabilidades de cada pessoa, mas todas invariavelmente são solicitadas a fazerem escolhas com relativa frequência. A escolha poderá ser tão trivial quanto decidir entre pedir um sorvete de chocolate ou um de creme, como poderá envolver o destino e a vida de milhões de seres humanos tal como no caso das grandes decisões políticas”. Eis o que afirma Aroldo Rodrigues, em seu “Psicologia Social” (Editora Vozes, 1972), obra que adquiri dia desses, em bom estado e baratinha, num dos sebos da nossa Cidade Alta.

​Os juízes, claro, tomam decisões todos os dias, a toda hora. E não são escolhas de sorvetes; são decisões que envolvem o destino e a vida das pessoas.

Como já disse certa vez aqui, essas decisões (judiciais) não são simples operações lógicas neutras, de verificar se os fatos do caso se subsumem numa hipótese legal e, assim, proferir uma sentença/solução (um silogismo em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença). Como lembra Francesco Ferrara (1877-1941) em “Interpretação e aplicação das leis” (tradução de Manuel A. D. de Andrade, Arménio Amado Editor Sucessor, 1963), “na aplicação do direito entram ainda fatores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se degradar num autômato de decisões”. De fato, os juízes decidem baseados numa variedade de fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Os reais fundamentos da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios, extremamente influenciados pelos preconceitos e valores do julgador, nos alertam os chamados “realistas jurídicos americanos”.
​É precisamente dentro desse contexto que venho aqui fazer uma defesa das decisões colegiadas dos tribunais (acho que não preciso dizer o mal que algumas decisões judiciais monocráticas, tomadas nos últimos tempos, têm feito à credibilidade da nossa Justiça), desta feita pelo prisma da psicologia social.

​É verdade que tanto as decisões monocráticas (é assim que se chamam, em juridiquês, as decisões tomadas individualmente) como as decisões coletivas podem estar certas ou erradas. Não é simplesmente porque a decisão foi tomada coletivamente que ela estará certa. Já se viu muita unanimidade burra. Isso é fato.

​Mas há, sem dúvida, alguns aspectos bastante favoráveis nas decisões colegiadas, sobretudo nos dias de hoje, quando parte da imprensa e as tais “redes sociais” querem pautar – para não dizer, direcionar – as decisões do Judiciário.
​O primeiro é a “difusão de responsabilidades”. Como registra o já citado Aroldo Rodrigues, baseado em alguns estudos precedentes, grupos tendem a tomar decisões que envolvam maior risco ou responsabilidade que indivíduos isoladamente. Pessoas em grupo sentem-se menos pressionadas ao tomar uma decisão arriscada – leia-se, aqui, impopular –, mas que trará maiores benefícios caso dê certo. A tendência é no sentido de enfrentar a turba em busca da decisão juridicamente correta, dividindo-se a responsabilidade pelo fracasso caso a decisão seja errônea.

​Em segundo lugar, a colegialidade é um mecanismo – pensado, criado e fomentado – que protege o juiz de suas idiossincrasias e daquilo que compõe o seu horizonte interpretativo pessoal. Mecanismo que funciona. Todos nós, e isso inclui os juízes, temos preferências e valores diversos, e nossas decisões, para o bem ou para o mal, são afetadas por essas características herdadas ou adquiridas. As decisões tomadas no exercício da magistratura, reitero, não fogem a esse contexto. Se o comportamento dos juízes, nos tribunais (onde as questões são finalmente decididas), é afetado pelas fraquezas inerentes à dinâmica de pequenos grupos, ele também é afetado – e isso prepondera – pelas virtudes desses grupos. E uma dessas virtudes, talvez a principal delas, é precisamente obrigar os juízes a controlar seus próprios juízos (sempre afetados por características herdadas ou adquiridas) em diálogos com juízos próprios (tomados anteriormente) e, sobretudo, alheios. Nesses diálogos colegiados, o juiz se torna mais independente de si mesmo e de suas próprias arbitrariedades.

​Em terceiro lugar, a colegialidade, em regra, contribui para o aperfeiçoamento do processo decisório. Ela capacita os juízes a instigar o conhecimento de seus pares. Ela é, psicologicamente, um incentivo ao aperfeiçoamento do modo de decidir do juiz, já que os juízes, no debate de ideias, por saberem que suas posições irão ser objeto de escrutínio pelos pares, formulam-nas com maior cuidado e precisão. A colegialidade, assim, enseja um aprimoramento do resultado do trabalho decisório dos juízes e, consequentemente, um fortalecimento institucional do Poder Judiciário.
Em quarto lugar, há a força em si das decisões colegiadas, sobretudo as tomadas por unanimidade. Quando uma corte decide um caso com base em regras e princípios colegiadamente debatidos, ela está, certamente, criando material precioso e raro, que, forjado na dialética, tende a ser sempre mais respeitado. Até porque as decisões colegiadas, representando não somente a experiência dos juízes, mas também seus diferentes talentos e perícia, refletem a sabedoria do tribunal como uma instituição que transcende o momento.

Bom, pelo menos eu penso assim.

Muito embora eu também saiba, até porque já alertava o próprio Aroldo Rodrigues, que o tema (das decisões colegiadas em geral) “merece estudos posteriores, tal a sua relevância. Uma combinação dos ensinamentos das teorias econômicas e matemáticas relativas ao processo de decisão com os conhecimentos psicológicos deste processo deverão conduzir, muito em breve, a um conhecimento seguro em relação a este tópico cuja importância dificilmente poderá ser superestimada”.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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