INVENTÁRIO DOS BENS ESSENCIAIS –

Vivo o desconforto e a nostalgia de mim mesmo ao me deparar com o sonho dos meus vinte anos que a idade madura não confirmou. Sinto-me disperso, irrealizado, quando retorno às minhas origens telúricas. A meta de trazer o passado ao presente, reconstruí-lo pela palavra e pensamento a fim de reconquistar a minha auto-estima, parece-me uma tarefa hercúlea porque constato que o personagem não sou eu mas, sobretudo, o tempo. Deduzo que, precisaria recriar os fatos e renascer as pessoas. Verifico que sou o resultado de todas as convivências e acontecimentos afins do passado. Por isso, o vácuo e a irritação me arrastam ao entendimento inconcluso de que tudo foi ilusão e fantasia, ou infecção sentimental.

Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência, negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes. Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da memória?  “Tu não mudas o mundo. Mas o mundo te muda”. Talvez essa frase de Otto Lara Rezende explique e me convença que o futuro nada tenha a ver comigo, porque o passado está mais presente em mim do que o próprio presente.

Em cada rua onde passo em minha terra natal, revisito os mortos na lembrança tentando reconstituir os fatos com os quais dividi o tempo. Adquiri o hábito de rezar por quase todos eles, todas as noites. Faço-os prolongar no meu convívio pela relembrança. Para mim o chão dos antepassados é sagrado, mesmo que estejam sepultados nele resquícios enferrujados e rangentes de um perdido fausto. Macaíba, mesmo debilitada pela decadência física, da feição das fisionomias de ontem e das coisas, o que mais me dói nela é o sumiço das boas mentalidades e dos antigos costumes, como se fosse hoje um porão cheio de escuro oblívio, melancolia e solidão. Nostalgias, nada mais. Apenas, inventário dos bens essenciais.

Por fim, digo como um poeta “que revolvendo o passado, é que se encontra a palavra que envolve a unidade do gênero humano”. Nesses tempos agitados, de assaltos, homicídios, que ultrapassam estatísticas criminais, só nos resta assumir o compromisso com o imponderável e repetir sempre que só o “amor pode ler o que está escrito nas mais remotas estrelas”, no dizer de Wilde, que era místico na arte, na vida e na natureza. Tudo está suspenso no ar. Fora da vida pública procuro ser feliz e calmo para ser livre e isento, sem aspirações maiores, além do sonho vivido.

Interessa-me ser simples, sombra e luz, palmilhando ainda na casa dos oitenta, afanosos instantes de profundidade vital.

 

 

 

 

 

 

Valério Mesquita – Escritor,  [email protected]

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