Melgaço, cidade do arquipélago do Marajó, registrou o maior número de dias sob calor extremo em 2024 no Brasil. Os dados são de um levantamento exclusivo feito pelo g1 que mostram que a cidade passou mais de 200 dias do ano com temperaturas até 6°C acima das máximas que estava acostumada.
➡️ O município tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, a maior parte das moradias é de palafita — casas erguida em estacas de madeira sobre as águas — nem todas elas com acesso à energia elétrica. Melgaço é cercada pela floresta, sem acesso por terra e os cerca de 28 mil habitantes vivem do plantio, principalmente de açaí. Com a pouca infraestrutura, enfrentar o calor se tornou um desafio.
A realidade é um alerta para o que vem dizendo especialistas. O calor afeta o mundo todo ( 2024 foi o mais quente da história da Terra), mas são as regiões já quentes e as cidades vulneráveis, como Melgaço, as mais impactadas.
O que é considerado calor extremo?
A análise foi feita a pedido do g1 pelo Centro Nacional de Monitoramento de Desastres (Cemaden) com dados de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entenda abaixo como isso foi feito:
- Para cada dia do ano foi calculado um valor limite de temperatura.
- Para isso, foram analisandos os dados diários da série histórica entre 2000 e 2024.
- Como resultado, foi constatado o total de dias no ano de 2024 que superaram os valores mais altos vistos na série histórica, o que configura um extremo de calor.
- O índice é o mesmo usado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
E você pode se perguntar, de quão quente estamos falando? As temperaturas máximas costumam chegar aos 32°C na cidade nos meses mais quentes do ano, mas segundo o levantamento, em 2024 chegou aos 38°C.
Melgaço é a cidade com o pior índice do país, seguida por Belém, capital do Pará. O estado teve o maior número de cidades com mais de 150 dias sob extremos de calor em 2024 no Brasil. O que afetou mais de 4 milhões de pessoas.
Distante cerca de 250 quilômetros de Belém , Melgaço tem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,418, considerado o menor do Brasil desde 2013, quando foi publicada a última edição do Atlas do Desenvolvimento Humano Brasil, feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desnevolvimento (PNDU).
Os dados são com base no Censo de 2010. Segundo o IBGE, ainda não houve divulgação de dados atualizados de IDH considerando o Censo 2022.
A maior parte da população está na zona rural, segundo o governo federal. Com isso, o roçado é a principal atividade, não só como suporte financeiro, mas para alimentação. Isolada por água, o abastecimento depende de longas viagens de barco, o que tem alto custo. Com isso, as pessoas passam a maior parte dos dias expostos ao sol, sem opção.
Só 3% das casas têm acesso a esgoto sanitário adequado e não há estruturas básicas de saúde na cidade.
Em 2024, o calor castigou ainda mais a Melgaço, que enfrentava a seca que afetou a região Norte, a pior já vista. Com isso, famílias perderam o plantio, os poços de onde retiram a água para beber secou e as rendas e alimentação de centenas de famílias foram afetadas.
Os moradores contam que o ano de 2024 foi um dos mais difíceis que já enfrentaram. Sem a temporada de chuvas, por causa da seca, o calor ficava cada vez mais intenso e a água mais escassa.
“Ficamos mais de mês sem chuva, os poços e água secaram”, detalha o contador Ricardo Viegas, de 27 anos.
Melgaço enfrentou vários de seus dias mais quentes sem água e com a falta de energia em muitas das casas, ficou quase impossível se refrescar.
Os moradores contam que nem mesmo os bichos suportavam. Animais selvagens começaram a se aproximar das comunidades, pois foram forçados a deixar a floresta devido ao fogo e à escassez de água.
Fora da zona rural, onde as casas tinham energia e não eram de palafita, os moradores também relatam terem enfrentado um calor nunca antes visto. Apesar de terem rede elétrica, nem sempre ela estava disponível, justamente pela sobrecarga no sistema.
“Para amenizar o calor, tivemos que ligar mais vezes o ar condicionado, no horário da tarde, chamávamos de horário de pico, onde todos ligavam seus aparelhos de ar, e a energia caía com frequência”, detalha o contador Ricardo Viegas, de 27 anos.
Segundo a concessionária Equatorial Pará, houve picos de energia na região, com sobrecarga na rede, o que fez com que a energia caísse.
Além do calor, a cidade ainda teve que enfrentar a fumaça. Segundo o Inpe – responsável pelo levantamento oficial usado pelo governo federal – o Pará foi o que mais queimou no país em 2024, ano que o Brasil teve recorde de queimadas. O estado registrou 20% dos focos no país, foram 56 mil pontos de fogo. E isso não é de hoje: desde 2021 o estado lidera o índice.
Segundo os dados, Melgaço teve apenas 120 focos, o que é 0,2% das queimadas no país. No entanto, cercada por áreas em chamas, a cidade foi tomada por fumaça.
Os moradores enfrentaram problemas respiratórios devido à fumaça das queimadas, principalmente idosos e crianças. Um médico que atua na rede pública do estado e atende populações ribeirinhas conta que o número de pessoas com doenças respiratórias mais que dobrou durante o período de queimadas, até outubro de 2024.
O g1 questionou as secretarias municipal e estadual de saúde, mas eles não informaram o volume de atendimentos por demanda de calor e problemas respiratórios causados pelos incêndios.
Calor é um problema de saúde pública
O estresse térmico, índice que mede a exposição ao calor e os riscos potenciais à saúde humana, pode, no entanto, levar a consequências mais graves, como a morte. O limite varia de pessoa para pessoa, o que depende da exposição. Isso reforça os fatores sociais relacionados ao calor.
Segundo o Ministério da Saúde, nos últimos 14 anos, quase 60 pessoas morreram devido ao calor intenso no país. O governo, no entanto, não informou quantas dessas morreram em Melgaço ou no Pará. O que especialistas explicam é que esse número, no entanto, é subestimado, porque não há um acompanhamento das mortes por efeitos do calor.
Em Melgaço, o atendimento médico é de barco e leva muitas horas. Na comunidade Santa Luzia, por exemplo, que fica na zona rural, há um posto de saúde para atendimentos, mas apenas para ações básicas como curativos e medicação. O mesmo ocorre em outras comunidades rurais do município.
Para ser atendido por médico os moradores vão até o hospital municipal, que fica na zona urbana de Melgaço, o que significa uma viagem de até 5 horas de barco. Em casos de urgência, uma ‘ambulancha’ (embarcação que funciona como ambulância) é acionada, mas isso também não é um caminho rápido.
Quando há necessidade de atendimento especializado é preciso ir a Belém, aumentando ainda mais o tempo de viagem de barco, que pode chegar a 16 horas. Ou seja, na cidade em que as pessoas estão mais expostas, o risco é ainda maior à vida.
Sandra Hacon, pesquisadora da Fiocruz sobre os impactos do calor à saúde, explica que o cenário na cidade é um retrato do que as mudanças climáticas estão fazendo, afetando as pessoas mais vulneráveis e cidades mais pobres.
O meteorologista e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Mauricio do Nascimento Moura também destaca como as consequência do calor afetam mais a população com menos acesso a infraestrutura.
“Se você tem um município que investe em um transporte público melhor, mais rápido e com ar-condicionado, por exemplo, você tem uma população que vai sofrer menos. Diferente de uma população que não tem essa estrutura toda, porque não tem investimento nisso e vai sofrer mais esses efeitos. Melgaço e Belém, por exemplo, o efeito do clima praticamente igual sobre as duas cidades, mas a infraestrutura vai modificar a percepção disso”, diz.
Por que tanto calor?
Ainda segundo o meteorologista e professor Mauricio Moura, o calor no Pará tem dois pontos a serem considerados: o natural e o antrópico (que depende da ação humana). O natural é avaliado pelas temperaturas do oceano que acontecem em decorrência de fenômenos como o El Niño e o La Niña.
“Esse fenômeno, tanto o El Niño quanto La Ninã, quando acontecem se estendem de um ano para o outro. Em 2023 aconteceu isso trazendo grandes consequências para o Oeste da Amazônia”, explica o pesquisador. Segundo ele, o fenômeno se prolongou até 2024, resultando em uma influência negativa nas chuvas da região Norte.
Em relação ao fator antrópico para o calor, o professor destaca as queimadas e desmatamento no Pará em 2023 e 2024. Com menos chuva, aumentaram ainda mais os focos de incêndios e o governo estadual decretou situação de emergência em agosto de 2024, além de proibir uso de fogo.
Em Melgaço, os focos foram provenientes, principalmente, de queima de vegetação na limpeza de quintais e terrenos, de acordo com a atual secretaria municipal de Meio Ambiente, Marluth Fialho. No entanto, o município não possui batalhão dos bombeiros e, segundo ela, foram os próprios moradores e voluntários que que trabalharam no combate às chamas.
O professor da UFPA destaca a importância de discussões e debates sobre as mudanças climáticas e a importância de investimentos em políticas públicas voltadas para o clima.
“Governos, Estados, União têm que investir no que for melhor para o nosso meio ambiente. Por exemplo, arborização de cidade. Inclusive até Belém, uma capital, precisa ser bem mais arborizada, ainda mais então nessas cidades que tem um potencial [econômico] menor, cidades do interior”, diz.