A JANELA –

Vi a cidade enorme a primeira vez com deslumbramento e medo. Tudo era gigantesco, superlativo, impressionante. O desejo de me sentir local soou audacioso demais. E eu me senti apenas o grão de areia temendo o vento.

Dei os passos claudicantes de quem chega e não conhece. Experimentei, fui aos poucos, marquei um território suficiente para me caber dentro dele. Tudo era novo, inclusive o jeito de viver, todo mundo apressado como se não fosse amanhecer o dia seguinte. Entrei no jogo, não havia alternativa. Aprendi com todo mundo a ter emergências que não mereciam urgência nenhuma, não faziam falta, mas sempre soavam indispensáveis.

Fui embora quando chegou a hora de ir, vencido o primeiro tempo do jogo. Havia um desafio em outro lugar e não faltei com meu espírito inquieto, curioso, confiante. Afinal, já ouvi que o mundo é mundo em qualquer lugar, o que muda é o tamanho e o jeito de ser de cada local – e das suas pessoas. O passar do tempo vai cada vez mais me convencendo a respeitar essa teoria.

Rodei meio mundo, voltei muitas vezes por períodos curtos e, vinte anos depois, a vida me deu direito a um segundo tempo. Escolhido sem urgência. Cheguei de novo. As rugas impressas ao longo da jornada ajudaram a determinar o ritmo. Com mala e cuia guardadas em seus devidos lugares, meti pé no asfalto urbano.

Gastei sola, fui revendo tudo, pessoas e locais, estabelecendo novos territórios, o prazer aumentando. Percebi que me sentir local já não era tão audacioso, apenas uma questão de lugares e horas certos. E foi acontecendo. Sem pressa. A cidade virando minha não por propriedade, mas por afinidade. Delicada, bondosa, quente, acolhedora. Frio somente o seu inverno famoso.

O andar pelo mundo me ensinou a arte de formar pares e a usar a aritmética para multiplicá-los, montar trios, quartetos… nunca esquecendo de que tudo é uma via de mão dupla. E fui convivendo com personagens conhecidos e anônimos, sempre usando o mesmo tom na partitura dos relacionamentos porque nenhuma nota é mais importante do que as outras.

Os primeiros tempos foram ao redor do coração sensorial da cidade, a avenida Paulista. Um ambiente multitudo, pulsando vinte e quatro horas por dia, todos os dias, sem trégua. Confluência de tudo e de quase todos.

Queria repetir o que vivi nos tempos do Rio, quando finalmente subi a colina e fui viver o cotidiano incomum de Santa Teresa, muito diferente do resto da cidade. Sou atraído por lugares assim, deve ser coisa de quem vem do interior.

Aqui a ladeira foi menor, vim para o alto de Perdizes – ou das Perdizes, como dizem os mais tradicionais. Casa. Rua sem saída, fechada em condomínio, portão na entrada. Só entra quem tem negócio. Transversal de uma avenida importante onde tem de tudo. O glamour é discreto, sem exibicionismo. Melhor assim.

O ambiente bucólico e calmo cria um ar de cidade de interior que reflete numa ótima convivência entre as pessoas. Muita gente se conhece. Muita gente se conhece pelo nome. E os estranhos são logo notados.

O arvoredo cria um cenário espetacular com o sol, ainda mais no entardecer, quando o dourado parece marcar ponto ali. A passarada faz farra o dia todo, como que celebrando a natureza ao redor. Na minha rua os gatos vivem à solta, perambulando pelas casas como se fossem de todas elas. Há sempre um pratinho de comida a mais, para o da casa não passar vergonha com suas visitas.

No campanário da igreja os sinos dobram em seu repique tradicional ao meio-dia e na Hora do Angelus. Nada muito longo, apenas para nos lembrar que o tempo está passando, que o mistério permeia a vida independentemente de religião ou fé.

A padaria de todos os dias é sagrada. Outro dia, almoçando com um amigo, testemunhei uma moça entregando um buquê de flores para a atendente. Duas amigas festejando o Dia das Mães, com tom de agradecimento por algum favor feito antes. Alegria verdadeira, farra que fizemos juntos porque a presenteada deixou o cartão cair na calçada, que eu prontamente apanhei.

– Tá vendo só? Eu me desdobro para escrever umas linhas e ela joga fora antes de abrir!

– Bem feito, podia ter escolhido uma amiga melhor – emendei e caímos todos na gargalhada.

Há também o pé-sujo de lei, comida caseira da melhor qualidade! Segredo tão bem guardado que sequer tem placa na porta. Nenhuma indicação comercial, apenas aberto de forma acolhedora. A feijoada famosa – tem de ser reservada – servida na calçada lateral é um prazer indescritível.

O velho garçom senta-se à mesa para conversar um pouquinho quando o serviço dá um refresco – gosto de almoçar tarde e, aqui e ali, tenho esse privilégio!

A lavanderia faz atendimento domiciliar sem cobrar mais por isso. Tem preços em conta, mas o atendente vai logo avisando que, havendo regularidade, se conversa um desconto. E quando há desencontro na hora da entrega, a vizinha recebe tudo como se fosse a coisa mais natural do mundo.

O ponto de táxi é um reduto de veteranos que nem se dão mais ao trabalho de reclamar dos aplicativos de mobilidade urbana. E, convenhamos, nenhum serviço moderninho oferece aquele papo inigualável sobre qualquer assunto. Afinal, não se faz história do dia para a noite.

Acordamos com a passarinhada. Os barulhos urbanos são menores, ainda há um resto de silêncio noturno. Mas aqui as escuridões também se perderam em tanta iluminação, o que certamente faz nossos passarinhos – os sabiás no comando dos silvos e gorjeios a plenos pulmões – começarem a sinfonia ali pelas três da manhã.

Sim, os coitados estão confusos, não mais anoitece de acordo com as referências de claro e escuro que guardam na memória genética. A luzerna da cidade dá o comando errado e eles acreditam que já amanheceu no meio da madrugada.

Mas a gente termina se acostumando e, quando acorda com a música deles, aproveita para tomar uma aguinha, ir ao banheiro, apagar uma luz que ficou acesa, e adormece de novo embalado pela sinfonia.

Sejamos racionais, fomos nós que destrambelhamos a lógica da natureza com a mania de interferir em tudo. Agora, para quem tem a sorte de merecer esse pelotão de cantores silvestres, é aguentar o tranco e mudar, mesmo sem querer, o relógio biológico. É o troco que nos cabe.

Um dos grandes tesouros que tenho aqui é a minha janela. Não há prédio diante dela, apenas algumas casas da mesma altura, que não têm a menor intenção de esconder a vista do cinturão purificador da copa das árvores. Ou o céu noturno que se esforça para ser pleno, apesar dos prédios e torres mais distantes.

Do alto da pequena colina posso ver um pouco do vale que se esparrama lá adiante, e a rota dos passarinhos livres pelo direito de ir e vir num espaço aéreo que não precisa de controladores de voo.

Da minha janela posso ver os periquitos e maritacas nos fios e postes que estão quase ao alcance da mão. Gosto de assoviar com eles, certo de que estou sendo aceito no bando. Educados, eles fingem que sim, pois não vivem para fazer ninguém infeliz.

Posso ver a mulher bonita da casa da frente, sempre sozinha, que não é simpática, que não é antipática. Que é sempre pródiga quando se curva para tirar coisas do porta-malas do carrinho inglês e enleva a cena com todos os contornos dos desejos puros e impuros. Impontuais. Perfeitos. Felizes.

Posso ver o movimento do gato da casa entrando e saindo para seus compromissos, pois escolheu exatamente a minha janela e o telhado do andar de baixo como rota particular. Ele nunca deixa de fazer uma social quando está de passagem, ronronando ou se esfregando nas minhas canelas. Se tem mais tempo, acomoda em meu colo e fica assistindo as letras chegando em correria pela tela, ou tirando um cochilo. Às vezes, até fica para dormir. Malandro, mimoso, vivedor, praticando afinidade.

Posso ver o sereno da noite revelado pela luz do poste da iluminação pública ou cortado pelos pequenos insetos em seus voos calmos em busca de calor. Um jeito de escrever poesia na falta de escuridão.

Posso deitar com tudo apagado e me entregar à brisa como quem recebe um abraço das delicadas sombras noturnas. Ou ser apenas mais uma criatura da noite tentando esquecer o próprio destino, querendo deixar para quando amanhecer e tudo recomeçar.

Neste pedaço reservado da cidade gigante reconheço a minha cidadezinha do interior. Que tinha postes que serviam somente para sustentar fios, abrigar passarinhos e inutilizar pipas de garotos sem perícia. Aqui não existem garotos sem perícia, porque os de hoje já quase não sabem o que é pipa, quanto mais soltar pipas. Perícia? É melhor não insistir, já foi recolhida à língua morta.

O segundo tempo do jogo foi decisivo. Aprendi a passear na garoa. Encontrei minhas saídas. Desvendei o desconhecido. Conquistei meu território de comum acordo. Passei a fazer parte do estabelecido. Reconheço meu lugar. Agora a cidade enorme está tatuada em mim.

Não é mais insondável nem assustadora. Moderníssima, antenada, aceitou o pedido de amizade que enviei no formato analógico. Percebi que nunca fui audacioso demais, apenas estava assustado a mais naquele primeiro tempo antigo.

Doravante, ela vai comigo aonde eu for porque me deu sua honrosa cidadania. Porque se mostra linda e terna para quem, como eu, se dispõe a encontrar a poesia concreta, abstrata e moderna de suas esquinas. E ainda flertar com sua alma feminina, que passa na elegância nada discreta de suas meninas. Por isso, alguma coisa sempre acontece.

Começo a antever o futuro, aprendendo a sentir a saudade que ainda não veio porque está a caminho. Talvez eu não consiga compor uma valsa para a cidade. Mas me traduzo nos versos de Maria “Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar”. E digo algo no silêncio agradecido do meu coração: São Paulo, gosto de você!

 

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

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