Iniciado o novo ano, vou por à mesa, para discussão futura, uma questão que muito me preocupou no ano que passou: a progressiva “judicialização” da legislação brasileira (e, de um modo mais amplo, de tudo que se passa no Congresso Nacional), cujo clímax se deu com a decisão do STF, em arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), sobre o badalado processo de impeachment da nossa Presidente da República. No Brasil, cada vez mais – e o caso referido é apenas um exemplo, certamente o mais comentado -, o Judiciário tem feito o papel de (quase) legislar, papel esse que, constitucionalmente e pela própria natureza das coisas (afinal, temos uma salutar “separação de poderes”), cabe ao Poder Legislativo.
Não que eu seja um defensor de uma rígida separação dos poderes à moda da Revolução Francesa, segundo a qual o Poder Legislativo deve ser exercido apenas pelo Parlamento, com seus representantes eleitos pelo povo soberano, aos juízes cabendo, como registra Mauro Cappelletti (em artigo intitulado “Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea”, publicado na Revista de Processo), nada mais que a “aplicação passiva, seca e inanimada da lei”. Também não sou adepto da ancestral doutrina inglesa, formulada e defendida por Matthew Hale (em “The history of Common Law”, 1779) e por William Blackstone (em seus famosíssimos “Commentaries on the Law of England”, 1765-1769), de que os juízes “são os depositários das leis; os oráculos vivos que devem decidir em todos os casos de dúvida e que se encontram obrigados, por um juramento, a decidir em conformidade com o direito do país (…)”.
Acredito piamente na ideia de um “sharing of powers” e reconheço, em nosso constitucionalismo, vários exemplos de exercício, por um dos poderes do Estado, de função típica de outro. Entre esses exemplos está o controle de constitucionalidade concentrado, do qual a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é um dos seus importantes instrumentos. E, de modo mais amplo, reconheço o fato de que os tribunais brasileiros, sobretudo o STF (mas não apenas ele), com o consentimento do Estado, têm, com as suas decisões, exercido ou suplementado a atividade legislativa do país.
Mas também acredito na lição de Jean Dabin (no texto “Teoria geral do direito”, que faz parte do livro “Os grandes filósofos do direito”, organizado por Clarence Morris) de que: “(…) Não importa quão independentes e, nesse sentido, soberanos eles possam ser, os tribunais instituídos pelo Estado para administrar a justiça em nome do Estado são claramente depositários de uma parte da autoridade pública. Num outro aspecto, a lei que eles aplicam é basicamente a lei do Estado, quer a encontrem formulada em normas, quer tenham que elaborá-la eles mesmos. Pois está muito bem reivindicar a separação do poder judicial dos outros poderes do Estado, o legislativo e o executivo, sob o pretexto de que os dois últimos representariam poder político, ao passo que o poder do juiz seria de natureza exclusivamente legal. Primeiro, é um equívoco opor a lei – a lei do Estado – à política; a lei, a regra de uma sociedade política, está necessariamente subordinada às finalidades da política. Além disso, na medida em que os tribunais têm de elaborar a lei, eles têm de fazê-lo muito como atividade do Estado e para seus fins, o que é uma tarefa política. Por fim, é ilógico considerar como não político o poder judicial quando este, na ausência de uma regra legal, tem permissão para suplementar o poder legislativo, que é eminentemente político”.
E é aí que mora o perigo: o Poder Judiciário, quando exerce ou suplementa a atividade legislativa, exerce atividade essencialmente política, para a qual talvez não esteja preparado ou, pior, não esteja, à falta de respaldo democrático, legitimado.
Sinceramente, sou um defensor da dignidade da lei, e aqui falo daquela lei legitimamente elaborada pelo Parlamento eleito. E também sou um simpatizante do juiz que, decidindo através de juízos analíticos, mesmo em caso de lacunas da lei, é sobretudo um explicitador do sistema. Do juiz que, mesmo criando uma norma para o caso concreto (e, às vezes, de caráter geral), o faz limitado (em primeiro lugar) pela Constituição e (em segundo lugar) pela legislação primária e secundária existente. Do juiz que respeita, sem fazer disso um dogma intransponível, a separação dos poderes, sabedor do perigo do exercício da política por um Judiciário não vocacionado para tanto.
No mais, sobretudo, sou um fã da doutrina, desenvolvida pela House of Lords do Reino Unido (que, antes da instituição da Supreme Court, era o mais alto tribunal daquele Reino), do “leave it to Parlamient”, ou seja, de que algumas questões, pela natureza delas, devem ser resolvidas pelo Parlamento. Como exemplo da aplicação dessa doutrina, eis a lição de Lord Lloyd no caso R v Clegg [1995] 1 ALL ER 334, decidido pela House of Lords, sobre a qual não canso de meditar: “Eu não sou contrário a que juízes desenvolvam o direito, ou mesmo criem novo direito, no caso de eles poderem ver seu caminho claramente, mesmo quando questões de política social estejam envolvidas. Um bom exemplo recente seria a confirmação por esta Casa de decisão da Court of Appeal (Criminal Division) de que um homem pode ser culpado de estuprar sua esposa (R v R – (rape: marital exemption) [1991] 4 ALL ER 481, [1992] 1 AC 599; affg [1991] 2 ALL ER 257, [1991] 2 WLR 1.065). Mas, no caso presente, eu não tenho dúvida de que Vossas Excelências devem abster-se de criar direito. A mudança do que deveria ser, de outro modo, homicídio para homicídio culposo, numa classe particular de casos, parece a mim essencialmente uma questão para decisão do Legislativo, e não para esta Casa em sua função judicial. Por isso, o ponto em discussão é, na verdade, parte de uma discussão mais ampla: se a prisão perpétua obrigatória por assassinato deve ainda ser mantida. Essa questão mais ampla somente pode ser decidida pelo Parlamento”.
Por fim, sobre o perigo de um ativismo judicial que avizinha, deixo vocês com a célebre frase do nosso Rui Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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