Feio é o leito do meu rio. O Jundiaí. Negro e ácido como a valeta onde mijava o sudorético Taperoá. Era o rio do sol nascente e da maré cheia. A lua nascia imensa tão rente às águas que dava para carregar no bote do mestre João Lau. Com a lua cheia chegavam notícias antigas de morticínios coloniais lá pelas bandas do Ferreiro Torto. Da donzela que engravidara de Sotero, o preto feitor do pelourinho. De corpos mutilados comidos por siris esfomeados nas Mangabeiras. Tudo funcionava como se fosse o jornal vespertino do tempo, daqueles dias e noites de assombrações e mistérios profundos. O rio era límpido e líquido até o advento do óleo, do óleo Benedito, da borra de sabão, do sabão da ganância, do lucro fácil e fóssil.
Mataram o rio de antigamente. Aí Macaíba passou a feder 24 horas por dia. O leito poluído do Jundiaí exala odor cadavérico. De cima da ponte o padre Alcides Pereira ministrou extrema-unção, certa vez, benzendo com água benta da aurora. Do cais, seu Mesquita fez o discurso mais inflamado. Transcorriam os anos sessenta. Não havia ainda IBAMA, IDEMA, COVISA e ecologistas de visão curta. As agressões à natureza eram perpertradas sem anestesia. Época da queda da casa onde nasceram Auta de Souza e Henrique Castriciano. Período em que foram desconstruídos os antigos prédios centenários da Intendência na praça Augusto Severo e da ex-cadeia pública da rua Francisco da Cruz. Fase destrutiva e tenebrosa. Por terra e água. Caça às bruxas. Parecia que a nova ordem política instalada se descompromissava com o passado histórico e o meio ambiente da cidade invadida. A lei era o desrespeito sob o império de um falso modelo industrial. Familiar. Dominador. Político. Oficial.
A decadência de um povo ou de uma cidade pode ser a poluição do seu rio. A pesca – o sustento de centenas de famílias, a navegabilidade (antigamente todo o comércio com Natal era efetuado pelo rio Jundiaí) e a saúde da população são rudimentos de qualquer núcleo de civilização. Os nativos cuidavam melhor dos seus mananciais que os invasores europeus, ambiciosos predadores da natureza. Assim aconteceu com a Macaíba, lá pelos idos de sessenta, quando os hunos do Óleo Benedito passaram por ali.
Hoje, a história se repete. O rio virou foco de dengue e faz adoecer a população. Quem pescar e comer caranguejo, siri e goiamum de suas águas putrefatas morre sem direito a liminar. Até a metade dos anos cinquenta tomei banho no cais do porto, com Campina, Prego, Xixico, Toinho Chimba, Silvan, Chico Cobra, Edílson, Foreca, Batista Pinheiro, Tasso Cordeiro e tantos outros.
Era a “maloca querida”. Todos pobres, meninos e pastoradores de aurora.
Hoje, as autoridades constituídas cultivam o pestilento e pantanoso manguezal no leito nobre do rio, no cais histórico e na ponte de setent’anos para represar bosta e carcaças de animais, punindo de novo o Jundiaí que virou túmulo dos melhores dias e dos bons tempos. Por favor, retirem do leito do rio, somente no trecho entre o histórico cais e a ponte, para dá passagem ao tempo e ao vento.
Valério Mesquita é Escritor e Presidente do IHGRN [email protected]