KATUCHA DE TOLSTOI –
Volto à análise do instigante romance RESSURREIÇÃO do revolucionário escritor russo Tolstoi, notadamente no que pertine o personagem Katucha, a qual, seduzida e abandonada pelo poderoso príncipe Dimitri Ivanovitch Nekhludov, tornou-se prostituta e prisioneira de crime de homicídio que não praticara, razão do tormento e ressurreição moral de Nekhludov,, que se sente culpado por todos os males e degradações por ela vividos.
Katucha – criatura, mulher, número vivente – restringe-se neste romance ao aspecto tácito de vítima de injunções da existência e da sociedade. É mais do que vítima. Reduz-se a simples mola passiva do dinamismo paroxístico existente numa sociedade cheia de torvelinhos e aberrações. Tolstoi, em parte alguma do livro, a põe lançando em rosto de Nekhludov. O que este fizera. Talvez mesmo, nos degraus ínfimos a que descera, ela nem sequer o responsabilizasse pela sua queda. Não se trata nesta obra, pois, dum diálogo, dum debate entre vítima e algoz, dum ajusto de contas requerido. Tampouco há escândalo que abriguem Nekhludov a ressaciar o seu mau procedimento.
A própria Katucha, limada pela vida, talvez já não esteja na altura de aquilatar as causas remotas da sua atual degradação. Pode mesmo muito bem ser que o fato inicial não tenha sido deveras a única alavanca que a lançou na crescente velocidade da decadência moral. O príncipe não se vê a braços com o clamor público. Não há assim, portanto, atuando nele, nem a voz acusadora da vítima, nem a voz estentórea da multidão. Este livro, lido e relido em qualquer época da evolução do leitor, tem uma comovente beleza não pela justiça tardia e acaso sempre oportuno que aí se opera. Tem tal beleza porque qualquer leitor já não vê no Nekludov jurado o réu secreto da juventude.
Uma das excelências do livro está na prova de que Nekhludov jamais foi o ser objeto e vil que ora cuida ter sido. Sua leviandade de maço, bem medida em face do aspecto legal, religioso e ontológico, contemporaneamente ao fato, teria uma significação típica, distinta e bem nítida, para a qual um código prevê e comina sanções. Tantos anos depois, todavia, já não é da alçada da sociedade, pois o tempo fez caducar a culpa.
Mas será da alçada da sua consciência? Ou melhor – de qualquer consciência?
Pasmamos com as disposições categóricas, de ordem total, que Nekhludov toma, chamado a sim as conseqüências todas do ato inicial. E pasmando em dada página que se segue, porque tais determinações – promover novo julgamento, fazer subir ao czar uma petição de indulto, largar tudo, doar as suas terras, acompanhar Katucha ao degredo, ressarcir o mal de modo absoluto, obter a recuperação moral de Katucha e obter recuperação ética da sua própria consciência – tudo isso não seria no homem comum, em qualquer país e sob qualquer lei, obrigação peremptória imposta por vigências de qualquer categoria. Na verdade, Nekhludov deixa de ser o homem feito querendo resgatar um mal da mocidade, para atingir simbolicamente uma perfeição individual não mais em função do próximo, mas sim da sua consciência e da noção teórica de responsabilidade.
Ora, responsabilidade vem a ser o conhecimento exato e simétrico dos encargos. E também da observância e comissão desse encargo. Em Nekhludov há uma exacerbação romântica e até mesmo mística de tal critério.
Seria qualquer homem, fora desse quadro literário de Tolstoi, obrigado a tais outo-imposição em face de fato análogo? Lei alguma, por mais ortodoxa que fosse, não o absolveria sem tal penitência maciça?
Ora, doar terras na época em que tal livro se passa, acompanhar – nobre e príncipe que é – uma criatura plebéia à Sibéria, na Rússia de então, sé mesmo a mentalidade evangélica e não literária de Tolstoi o conceberia. Não literária, visto que a literatura imita a vida, e não as exceções da vida. Evangélica porque transcende da obrigação social para sublimar-se em bem geral, de crédito místico.
Nekhludov deixa, pois – no conceito comum – de ser réu que por suas próprias mãos corrige a qualquer tempo um crime já prescrito. Não pode tal livro evidentemente, à luz normal da conceituação da justiça ser modelo para casos análogos. Todavia, o leitor também sente que houve um mal e que persiste uma responsabilidade, cabendo ao foro íntimo o quantum do resgate necessário. Como encarar, então, a atitude de Nekhludov? Seu gesto subentende, deveras, um procedimento reclamado pela consciência individual e pela justiça comum? Em teoria, fora dos planos legais, sim. Em literatura, sim. Evangelicamente, cristãmente, sim. Mas por que admirarmos então um homem que teve tempo, sorte e clarividência para remir a si e a outrem?
Considerando bem a mentalidade de Tolstoi, as idéias de que fizera a principal finalidade de sua velhice quase de staretz, verificamos – a começar pelo título ‑ que este romance. RESSURREIÇÃO, não se enquadra nos estudos clássicos a respeito da responsabilidade, por mais que pretendamos encaixá-lo sibilinamente em qualquer legislação.
Quando o príncipe Nekhludov se ainda em considerações, perdendo-se na trama de exames de consciência quanto à violação do dever, casualidade voluntária, formas omissivas e comissivas da culpa, seu escrúpulo não sabe mais distinguir entre dolo e culpa, entre agravantes e atenuantes. Desconhecem causas derimentes, associações internas, coordenações, considerando-se totalmente culpado.
Será isso, mais que remorso, uma recuperação no tempo e no espaço, com o direito de se transformar ele, réu que fora, em juiz próprio, passando a condenado voluntário? Seria interessante tentar comprovar tal seriação. Mas é impossível. Pois ao cabo da leitura, vemos neste romance não um caso policial, jurídico e humano. O que vemos é um estudo exato e ascendente da psicologia do convertido.
De fato, Tolstoi, querendo estereotipar no príncipe Nekhludov um caso de consciência e autocondenação, involuntariamente transforma o réu extraordinário em convertido e iluminado. Raciocínios e reflexões soerguem-no de réu teórico a alma tão inquieta perante o mundo e o próximo como as de Santos Agostinho, Foucauld, Psichari, Retté, Newman e Manning. Também estes, em esferas outras e em tempos e terras diferentes, se viram a braços com problemas e escrúpulos ontológicos, indo tão longe que atingiram o limiar do sobrenatural.
O personagem de RESSURREIÇÃO poderia ser incluído no Dicionário das Convenções, de Migne. Suas considerações veementes, sinceras e febris, lembrariam as Confissões de Benson. Sua evocação da infância assemelhar-se-ia de certo modo à Gratry, bem como as conclusões a que chegou contra si mesmo fariam supor as razões de Ch. Moreice. Se J. Huby nos deu um grande tratado de conversão, se Mainage estudou a fundo a psicologia do convertido e a engrenagem da conversão, na verdade tais estudos, certos mas a bem dizer didáticos, encontram no livro de Tolstoi a experiência e a prova mais categórica.
Os aspectos psicológicos e canônicos, portanto, abordados por Tolstoi em RESSURREIÇÃO, especialmente o autojulgamento, condenação e expiação do príncipe Nekhludov em relação a sua nomeada vítima Katucha, não é um tratado real nem literário da vida humana, mas tão somente apologia de contingência sobre-humana.
José Adalberto Targino Araújo – Advogado e professor, Presidente da Academia de Letras Jurídicas/RN e catedrático da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas.
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