LEI OU JUSTIÇA? –
Nenhum magistrado, membro do Ministério Público e demais operadores do Direito (defensores públicos, procuradores do estado, delegados de polícia, etc) devem ter ódio no coração, crueldade, perversidade, desejo mórbido de punir e perseguir, seja qual for o infrator, desde o mais cândido delinquente ao mais terrível latrocida.
Ademais quem julga como sádico vingador ou justiceiro sedento de sangue nivela-se ao tirano Robespierre, que de tão ditatorial e implacável aplicador da guilhotina para tantos na Revolução Francesa, terminou guilhotinado, com apenas 36 anos de idade, após um açodado e intransigente julgamento, nos moldes do que ele próprio instituíra.
O julgador sereno, imparcial e justo, quase sempre se origina de uma infância e adolescência equilibradas, é portador de uma boa bagagem humanística, tem formação espiritual e, sobretudo, usufrui de paz interior, espírito democrático e plural.
Infeliz da Nação cujos operadores do direito são movidos por recalques, frustrações pessoais, sentimento de inveja, racismo, desprezo ao pobre ou ao rico, ao pária ou ao famoso, ao esquerdista ou direitista, ao ateu ou religioso, enfim que analisa sob a visão distorcida da sociopatia ou desequilíbrio emocional dos quais acaso seja portador.
Quem conhece as facetas do poder sabe quão perniciosa é a autoridade invejosa, atrabiliária, prepotente, arrogante; que pensa unilateralmente; que ironiza a justiça em nome de um legalismo piegas e de uma ética farisaica.
Eis porque absorvo, adoto e exalto os pensadores e juristas a seguir elencados, pela sabedoria e equilíbrio que representam para a produção de uma exegese sadia e pacificadora das demandas que dependam de equidade e, sobremodo, de justiça límpida e humanizadora.
Plauto Faraco de Azevedo defende a subordinação do juiz ao direito, e não à lei.
Tristão de Athayde preleciona “quando o juiz deixa de aplicar o rigor literal da lei, devido as circunstâncias dos fatos, não está ofendendo a lei. Muito pelo contrário, está cumprindo a lei em seu espírito e em sua equidade”.
No lapidar enunciado de Ulpiano “a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”.
As leis têm de ser interpretadas e complementadas à luz do que é reconhecido como eticamente justo.
“É inegável a possibilidade de o juiz criar o direito. A função da sentença não é apenas a de declarar o direito já consagrado na lei, mas o de realizar a justiça, aplicando o direito legal existente ou decidindo de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil) e aplicando a norma cabível, como se fosse o juiz o próprio legislador”. (JOSÉ DA SILVA PACHECO, “Interlocutório”, in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, por J.M. Carvalho Santos, vol. 28, págs. 21-22).
Portanto, a interpretação mais justa, razoável e equitativa é a mais ajustada ao bem comum temporal, isto é, aos valores predominantes da realidade social, do momento da aplicação da lei.
Surge, assim, a interpretação e a devida adequação da lei ao caso sub judice, na busca do justo, uma vez que a adaptação da lei ao caso liga-se especialmente a ideia de justiça.
O inigualável Pontes de Miranda afirma, que “a subordinação do juiz é ao direito, não a lei, por ser possível a lei contra o direito”.
Carnelutti (in Arte e Direito, tradução de Pinto de Aguiar, Livraria Progresso Editorial, Salvador, 1957, p. 69 e segs.) ensina que “se o legislador tem as insígnias da soberania, o juiz tem as suas chaves. No cotidiano forense, o ordinário é que os julgamentos contenham, em dose maior ou menor, a correção da lei. A luta do direito acaba por ser uma luta entre o legislador e o juiz”.
E conclui: “que se dê mais liberdade ao juiz, reclamando-se dele a correspondente dignidade, a fim de alcançar a visão suprema que é a instituição da justiça”.
Helmut Coing diz que “na ética do ofício judicial, o dever de decidir conforme a justiça tem precedência sobre os demais deveres. Assim, deve o juiz decidir com justiça inclusive contra o direito positivo”.
Eduardo Conture entende que “quando a lei e a justiça entram em conflito, deve o juiz ficar com a justiça”.
Aliás, a lei não é sagrada. Sagrado só o direito.
O jurista, se quer ser fiel à sua profissão, não pode entender o direito positivo, no seu conjunto, senão como uma via (entre várias possíveis) de realizar a maior justiça possível.
No terreno do Direito Científico, uma decisão é Direito porque é justa.
No atrito entre a verdade real e a verdade ficta, entre a Lei e o Direito, entre a sacrossanta justiça e a cambiante segurança jurídica, a ética deverá guiar a consciência do julgador para alcançar a verdadeira justiça, já que lei nenhuma ‑ substantiva ou adjetiva ‑ obriga o juiz a ser injusto e infiel a sua dignidade de anjo da paz.
Nos ensina as SAGRADAS ESCRITURAS ‑ o livro dos livros ‑ que a segurança não é um valor autônomo, porém tem uma base axiológica que a antecede, no caso a equidade. É o ensinamento divino extraído do Profeta Isaías, cap. 32, v. 17: “O produto da Justiça será a paz; o fruto da equidade, perpétua segurança”.
O artigo 114 do nosso Código de Processo Civil de 1939 dispõe que “quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador”, num avanço que o iguala ao artigo 1° do Código Civil Suíço.
A lei deve acompanhar as transformações sociais e científicas, adequando-se as contingências supervenientes, sob pena de ser um meio de infelicidades, discórdias e dissabores terrenos.
É inconcebível, por fim, acorrentar a vida às leis; é preciso estas àquelas, fazendo-as acompanhar a sua marcha incessante e adaptar-se às novas exigências, inclusive mediante o poder de criação, ou de renovação jurídica, que é outorgada aos julgadores de todas as instâncias.
José Adalberto Targino Araújo – Advogado, Professor e membro Catedrático da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas