LOS HERMANOS NEGROS –
Ao se andar pelas ruas de Buenos Aires, é difícil encontrar algum afrodescendente. Parece que ali só há descendentes de europeus. Não é bem assim. Houve épocas em que a população da capital argentina era composta com cerca de 30% de negros e mulatos. Bernadino Rivadavia, o primeiro presidente argentino, apelidado de “doutor chocolate”, seria um mestiço com ancestrais africanos.
A análise de dez censos demográficos realizados na cidade de Buenos Aires, de 1778 a 1887, mostra que, em oito deles, a população de origem africana oscila entre 24,7% e 30,1%. Apenas os censos de 1827 e 1887 apresentam número fora dessa característica; o primeiro por trazer números incompletos e o último por indicar 1,8% – note-se que, no censo anterior, o de 1838, a população negra e mulata representava 26,1%. Afora os números frios das estatísticas, têm-se evidências outras para comprovar o grande contingente de negros na população da capital. Uma dessas comprovações está no número de bairros cuja população negra era, se não majoritária, bem representativa: San Telmo, Monsarrat, Concepción, La Piedad e Balvanera.
Algumas explicações são dadas para o declínio da população negra da capital portenha: a grande imigração de europeus; a extinção da importação de escravos; a grande mortandade de soldados negros nas guerra de 1810 a 1870; as péssimas condições de vida que os sobreviventes das guerras tiveram que enfrentar no regresso, na qualidade de libertos porém sem trabalho, sem ter onde morar e sem ter o que comer; o baixo índice do crescimento vegetativo dos negros e, não menos importante, a mescla racial que teria embranquecido os argentinos de origem africana. De todas as causas apontadas para o desaparecimento dos negros, a mais importante talvez tenha sido o embranquecimento censuário da população. Como diz George Andrews (1989): “a transferência estatística de um grande segmento da população afroargentina da categoria parda-morena para a branca”.
A maior contribuição da raça negra – dos escravos e dos libertos – na Argentina, provavelmente não esteve na força de seu trabalho físico, mas sim na sua expressão artística, resultando naquela que é hoje considerada como a expressão mais legítima da própria alma portenha. Primeiro era uma música profana, com um ritmo bárbaro, executada por tambores, atabaques e outros instrumentos membranófonos, acompanhada por um bater constante com as palmas das mãos e por um canto sincopado. A dança era sincrônica, frenética, quase ato sexual. Eram os candombes dos negros de Buenos Aires, entre o meado e o fim do século XVIII, e também de Montevidéu, quando eram eleitos os reis e rainhas das várias “nações” (etnias) negras. Depois, como resultado do sincretismo de culturas africanas e europeias, houve uma espécie de abrandamento da música, do ritmo e da dança, o que resultou em uma ladainha, um embalo, quase música cristã: era a forma dos negros, escravos e libertos, participarem da procissão de Corpus Christi. Outra transformação, de volta às origens africanas, agora uma procissão dançante, não religiosa, os tambores, que eram realizados todos os domingos e feriados. Era a festa dos negros de Buenos Aires, que durava de meio dia até altas horas da noite, na Praça da Vitória, à qual compareciam o Ditador Rosas, sua família e altos funcionários do governo.
Com a grande emigração de europeus, essa música e dança foi como que “contaminada” por outros gêneros musicais, tais como a habanera e a milonga. O primeiro é um ritmo de origem afro-cubana que foi levado para a Espanha e que, modificado, retornou à América. É uma música de compasso binário, com o primeiro tempo fortemente acentuado, com uma curta introdução seguida de duas partes de oito compassos cada uma, com modulação do tom crescente. O segundo é um canto e dança da Andaluzia que, nos fins do século XIX, popularizou-se nos subúrbios de Montevidéu e Buenos Aires.
A fusão dos tambores com a habanera, com a milonga e com ritmos de origem europeia, resultou em um som mestiço, em um ritmo menos sexual, mas ainda sensual. Hoje o tango talvez seja o maior símbolo da Argentina (Femenick, 2003).
Tribuna do Norte. Natal, 29 nov. 2019
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia com extensão em sociologia. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN