LOUCURA ATRATIVA –
“Depois de pouco mais de três anos, trilhões de dólares em perdas e 20 milhões de mortos, a emergência internacional causada pela covid-19 chega ao fim, uma data que entra para a história recente da ciência e do mundo. Nesta sexta-feira, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou que seus especialistas chegaram à conclusão de que o vírus não representa mais uma ameaça sanitária internacional e que, portanto, a crise é oficialmente declarada como encerrada. Central para o fim da fase mais aguda foi a expansão da vacina”. Reproduzo trecho de matéria do portal Uol. Mas, na semana passada, coisa parecida, em tom de alívio, estava em todos os meios de comunicação da Terra (redonda).
Pelas regras da OMS, não foi uma declaração oficial do fim da pandemia. O “coisa ruim” – e falo aqui especificamente do vírus – ainda circula entre nós. Mas celebremos. Devido sobretudo às vacinas, o pior já passou. Mil vivas para todos os deuses e a quem mais de direito.
Todavia, na mesma semana em que celebramos o fim da emergência internacional pela covid-19, fomos surpreendidos com notícias estarrecedoras também envolvendo a pandemia e a vacinação respectiva: a Polícia Federal realizou operação contra uma bizarra turma que teria “inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados” que, assim forjados, viabilizariam a entrada de alguns do bando e de familiares, incluindo menores, nos EUA. E, “segundo comunicado da PF à imprensa sobre a operação, os investigados podem ter cometido quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. A continuidade da apuração deve esclarecer se de fato esses ou outros ilícitos ocorreram e quem seriam os autores”. E aqui reproduzo a BBC Brasil, embora a notícia estivesse em todos os jornais do país (redondo, ops, quis dizer lúcido) e diversos congêneres mundo afora.
Se a notícia do fim da emergência pela covid-19 nos deu alegria, a citada descoberta da falsificação dos certificados de vacinação é de dar uma tristeza mais que enorme. E não é só pela penca de crimes praticados, o que já seria por demais triste. É também pela absurdez da coisa.
Praticar “infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores”, todos esses crimes, envolvendo um montão de pessoas, numa trabalheira danada, correndo risco de ser pego (como foram), para não tomar “uma porra de uma vacina” (desculpem a expressão, mas é o que me vem neste momento de indignação), não tem lógica alguma. Zero. É absurdamente estúpido. E tudo isso numa pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil e milhões no mundo. Só posso dizer: “loucura, loucura, loucura”.
Para piorar, berrando uma malamanhada liberdade, há gente louvando essa loucura toda, que, como efeito colateral gravíssimo, levou muitas pessoas (menos informadas e mais vulneráveis) a não se vacinar e, em muitos casos, por consequência, à morte. “A cadela do fascismo está sempre no cio”, disse Bertolt Brecht (1898-1956); pelo visto, a cachorra antivacina também.
Pergunto-me quando essa absurdez vai acabar? Já nem sei mais se vai. Sempre temo a lição que aprendi assistindo a “O Terceiro Homem” (“The Third Man”), película dirigida por Carol Reed (1906-1976) com base em roteiro de Graham Greene (1904-1991), por muitos considerado o melhor filme britânico de todos os tempos. Uma lição sobre a “maldade atrativa”. Harry Lime, personagem interpretada por Orson Welles (1915-1985), é um criminoso, contrabandista e falsificador de Penicilina, que, na Viena pós-guerra, causou a morte e a invalidez física e mental de centenas de adultos e crianças. Cínico e sem escrúpulos, ao ponto de delatar a ex-amante para conseguir um ou outro favor dos soviéticos, ele é, a despeito das iniquidades cometidas, capaz de provocar a admiração de alguns e até o amor sem contestação da bela mulher. Lime/Welles confessa: “Ora, eu ainda acredito, meu caro. Em Deus, na misericórdia e tudo mais. Não estou machucando a alma de ninguém com minhas atividades. Os mortos são mais felizes mortos. Não estão perdendo grande coisa daqui, pobres coitados”. Tudo é feito e dito livremente e até “com um toque de genuína piedade…”.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL