Já tem um tempinho que ando assuntando sobre o significado de tudo isso que estamos vivendo. Cogito se não estaríamos vivendo “entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz”.

Já se fala em fim de um ciclo.

Busquei nos mestres do século passado uma possível fonte para compreender esta charada. Fixei-me em Macunaíma.

Segundo o próprio autor, Mário de Andrade, Macunaíma representa “a aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional”, concebida como o retrato cultural do povo brasileiro, índio branco, feiticeiro, mau caráter, preguiçoso, mentiroso, egoísta, gozador, capaz de rir de si próprio e de nunca perder uma piada. Terreno fértil para, frente à impunidade, florescer atos de corrupção, praticados com naturalidade, sem que sejam vinculados com a questão da ética ou com a moral vigente.  Como se fossem coisas separadas.

Pequenas corrupções cotidianas são consideradas “defesas”, expressão muito usada por diversos segmentos da população. Um passo para aceitar a corrupção de todos os níveis.

Macunaíma poderia ser a metáfora de uma crise, mas também pode ser tomado como um desafio a ser vencido. O povo brasileiro teria sido formado historicamente de forma a ser capaz de adaptar-se, no cotidiano, a inúmeras formas de estratégias de sobrevivência.

Capacitou-se a conviver “espertamente” com situações adversas de exploração, violência, corrupção, miséria moral, discriminação, desemprego, analfabetismo, utilizando-se das armas ou mecanismos psicológicos os mais diversos. A arma mais utilizada é o humor. Mentir talvez seja a vice-campeã. Impontualidade e Hipocrisia disputam pau-a-pau.

Relembro agora que aprendemos com Gilberto Freire que a família patriarcal determinou toda estrutura social e as relações com o poder público. Formou-se sociologicamente “uma invasão do público pelo privado, do Estado pela Família”. O patrimonialismo é visto como “natural”.

Para complicar ainda mais, nossa cultura tem como traço definidor sua diversidade e ao mesmo tempo o sincretismo de várias manifestações antropológicas, principalmente negras, índias e portuguesas. Assume dimensão gigantesca o problema da mestiçagem do povo brasileiro.

A mestiçagem é uma não-identidade. Somos todo mundo e não somos ninguém. Darcy Ribeiro, em seu livro “O Povo Brasileiro”, falou sobre o conceito de ninguémdade. Os brasileiros somos brancos que não são brancos, negros que não são negros, índios que não são índios.

Essa faceta adaptativa de nossa complexidade foi comprovada recentemente em pesquisa do IBOPE, cujo resultado aponta na direção da aceitação generalizada do nepotismo, do patrimonialismo (invasão do público pelo privado) e da corrupção eleitoral.

A pergunta “Você venderia o seu voto?” tem resposta imediata e sem pejo: “Depende do preço que você pagar”. Em cada eleição, no Brasil, milhões de votos são vendidos.

O Ibope tem pesquisa, não publicada, reveladora do grau dessa característica nacional: quase 75 por cento dos entrevistados admite que conviveria com a corrupção, se estivesse em cargo público. Na base do “todo mundo faz”.

Para completar, a urbanização ocorrida em velocidade vertiginosa nos últimos quarenta anos expulsou milhões de trabalhadores rurais (caipiras) para os centros urbanos, lançando nas cidades muito mais gente do que as fábricas conseguiram ocupar. São lúmpens, diria Marx.

São milhões de pessoas cujo único compromisso é consigo mesmo, com sua sobrevivência. A vida famélica não lhes deu oportunidade de perceber que existem princípios éticos em nosso mundo, menos ainda que a civilização somente será construída a partir da cidadania.

Resumo da ópera: provavelmente, “tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes” ainda durante um bom tempo. Até porque essas questões são estruturais, históricas, sistêmicas, e não serão resolvidas nem fácil nem rapidamente. Com sorte, no patropi, a cidadania se fará vida nas gerações dos meus bisnetos.

Por enquanto, Macunaíma vive.

 Rinaldo Barros é professor – rb@opiniaopolitica.com

Ponto de Vista

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