Em 2015, meses antes de a epidemia do vírus da Zika ser declarada oficialmente no Brasil, Adalgisa Figueiredo, residente de São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Natal, vivenciou um momento de insegurança e vulnerabilidade que faria parte da realidade de milhares de pessoas nos próximos meses: sua filha, Emilly, fora diagnosticada com a Síndrome Congênita do Zika Vírus.
Foi nesse momento que Adalgisa, que já era mãe de uma criança de dois anos, precisou entender uma realidade ainda pouco conhecida em muitos aspectos do cuidado, no que diz respeito ao desenvolvimento, qualidade de vida e bem estar das crianças que, como Emilly, nasceram com a condição.
A Síndrome foi descoberta em 2015, em decorrência das alterações dos padrões de ocorrência de microcefalia ocorridos no Brasil, o que levou o país a decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e, posteriormente, Internacional.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2015, ano de início da epidemia do Zika Vírus, foram notificados 2.975 casos de microcefalia decorrente da Síndrome Congênita em 656 municípios de 20 estados brasileiros, a maior parte deles na Região Nordeste. O número foi 20 vezes maior do que a média de casos de microcefalia registrados nos 15 anos anteriores (2000 a 2014), que até então era de 150 bebês nascidos com a condição por ano.
A partir do diagnóstico, Adalgisa precisou mudar a forma de enxergar o desenvolvimento da filha. A visão universal do desenvolvimento, com padrões rígidos e escalas pré-definidas, não cabia na realidade de Emilly, Com o acompanhamento correto, no entanto, ela logo percebeu que havia um mundo de particularidades e potencialidades a serem entendidas e incorporadas à trajetória da filha.
“Cada pequena melhoria, que para outras crianças pareceria besteira, para ela é muito e, para mim, é um grande avanço. Cada desenvolvimento dela é uma felicidade, um orgulho”, disse Adagilsa.
“Representa para nós um retorno que tivemos da busca por terapia e do esforço, tanto meu, como dos profissionais que cuidam dela”.
Atualmente, Emilly é acompanhada por equipe multiprofissional no Instituto Santos Dumont (ISD), em Macaíba (RN). Um dos aspectos mais trabalhados e que, segundo a mãe, apresentaram uma evolução notável, é o funcionamento da bexiga e intestino que, para crianças com a síndrome congênita, podem apresentar alterações, em decorrência de disfunções chamadas Bexiga e intestino Neurogênicos.
“Antes, ela não tomava uma gota de água, não gostava de jeito nenhum. Hoje em dia, ela já toma de meio litro a 700ml. Temos uma meta para que ela chegue a litro por dia. Estamos tentando, um dia após o outro”, disse a mãe.
“Isso também faz parte do que aprendi: não adianta estipular uma meta muito alta, fora da realidade para a criança. O desenvolvimento é uma coisa devagarinha mesmo. Muitas vezes, são detalhes que a gente vai vendo e que, com o tempo, revelam a mudança e a evolução da criança”.
Adalgisa e Emilly percorrem, desde o momento do diagnóstico, uma trajetória para ressignificar as noções de desenvolvimento infantil a partir das necessidades e potencialidades de cada criança.
Para a preceptora fisioterapeuta e especialista no cuidado à saúde da pessoa com deficiência pelo ISD, Luana Farache, a epidemia do Zika também foi relevante para os profissionais da saúde. Isso envolveu, também, um olhar diferenciado para o período pré-natal, com atenção especial para a proteção contra arboviroses, já que a Zika é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.
“Antes, em nenhum momento nós pensávamos que um vírus como o Zika poderia ter tantas particularidades em larga escala. Isso despertou esse nosso olhar enquanto promotores da saúde global”, explicou Luana.
“Eu não vou, por exemplo, receber uma mulher gestante pensando só se ela tem uma dor no ombro, uma lombalgia, uma alteração comum à gestação. Eu vou pensar em orientações para o cuidado com a gestante de maneira mais ampla”.
Um outro aspecto importante transformado pela epidemia refere-se à atenção e cuidado da saúde da criança. Segundo Farache, o rompimento de uma visão rígida sobre desenvolvimento deu espaço para uma análise mais abrangente, considerando a individualidade de cada criança, e disseminando o entendimento de que nem todas as crianças possuem o mesmo quadro e as mesmas lesões do ponto de vista neurológico.
“O diagnóstico não é decisivo, não é uma sentença. Ele é o primeiro passo numa caminhada longa que exige dar uma oportunidade para o sujeito se desenvolver, sem reduzi-lo ao que se imagina que ele vá conseguir fazer por conta de uma alteração que um exame mostra”, pontuou Luana Farache.
“Diagnóstico não é destino” é uma ideia que também marca o cotidiano de Thais Valim, cientista social que, desde 2017, estuda a realidade de famílias diretamente implicadas na epidemia do Zika Vírus.
Após ingressar no mestrado em Antropologia Social da UFRN, a pesquisadora visitou o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Anita), uma das unidades do ISD em Macaíba, onde passou a desenvolver estudos etnográficos sobre a vivência de crianças com microcefalia atendidas pelo ISD e de suas mães.
“Na pesquisa, busco trazer nuances da perspectiva que aprendi com as crianças e com suas famílias: que uma pessoa com deficiência é muito mais do que sua deficiência. As crianças diferem entre si, têm particularidades, especificidades”, explicou a cientista social.
“A ideia era mostrar essa variedade, buscando fugir de modelos muito universalizados sobre que é a deficiência e focar em um nível mais local, entendendo como a deficiência é manejada e compreendida pelas próprias famílias”.
A epidemia do Zika vírus moldou as relações do núcleo familiar e transformou múltiplos aspectos no âmbito da assistência e cuidado à saúde materno-infantil e de pessoas com deficiência. A coordenadora do Centro Especializado em Reabilitação do ISD (CER ISD), Camila Simão, salienta que, com o aumento das infecções pelo vírus e suas consequências, novas alternativas no cuidado especializado mostraram-se necessárias.
Por isso, é importante criar uma linha de cuidado voltada para crianças com microcefalia congênita causada pelo Zika, com ela relata ter acontecido no ISD.
“Foi montada uma equipe multiprofissional especializada nesse cuidado, pensado na necessidade de vários profissionais, como neuropediatra, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, neuropsicólogo, urologista… trouxemos para o cuidado o acompanhamento da bexiga, a partir da identificação da bexiga e intestino neurogênicos nesses casos, para dar uma melhor qualidade de vida à criança e suas famílias. O que percebemos hoje, é que o número de crianças entrando nessa linha de cuidado foi bastante reduzido, o que é um sinal positivo”, explica Camila Simão.
O Instituto também desenvolve pesquisas próprias e ingressa em estudos multicêntricos. Foi a partir de um desses estudos, conduzidos em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que descobriram a presença do Intestino e Bexiga Neurogênicos nas crianças com a Síndrome.
Os estudos de graduação da cientista social Fernanda Moura, atualmente mestranda em Antropologia Social pela UFRN, também se delinearam no cenário pós-epidemia de Zika Vírus e suas repercussões, com foco na perspectiva de profissionais de saúde e nas transformações dos serviços especializados.
A pesquisa ressalta, majoritariamente, aspectos relativos ao cuidado multiprofissional no contato direto com os usuários afetados pela Zika e os desafios presentes na prestação de serviços em um contexto de epidemia.
Segundo a pesquisadora, um dos principais achados do estudo diz respeito aos impactos da metodologia multidisciplinar na construção de uma comunicação efetiva, na discussão dos diagnósticos e na abordagem dos possíveis tratamentos para cada criança, levando em conta as particularidades do Zika.
Os estudos constataram, na abordagem multidisciplinar, potenciais benefícios que podem gerar melhorias em outros espaços de saúde e na reabilitação de diversas condições neurológicas, para além da microcefalia.
“De forma geral, nossa pesquisa tem como objetivo observar como os tratamentos e a reabilitação intensiva, a partir dos itinerários terapêuticos percorridos, agem ativamente na vida das crianças com microcefalia e de seus familiares, com ênfase nas mães”, pontuou Fernanda.
Para Adalgisa e tantas outras mães de crianças que convivem com a Síndrome Congênita do Zika Vírus, os desafios trazidos pelo diagnóstico não transformam o amor e o orgulho que sentem ao ver cada avanço dos filhos.
“Ainda falta na sociedade essa sensibilidade para ajudar, para evitar comparar com outras crianças e, principalmente, ainda falta acessibilidade. Essas são coisas que eu aprendi convivendo com Emilly, e que deveriam ser ensinadas a todas as pessoas”.
Fonte: G1RN
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