MAIS UM DIA –
Hoje foi mais um dia de rever o pequeno torrão natal, as ruas e becos, as casas por onde passou nossa vida, de sentir saudade das pessoas que já não estão, de ver de longe e ao longe algumas pessoas que já estavam ali no começo, e que quase por milagre ainda estão por lá – mesmo que algumas nem mais saibam que ainda estão e são.
Hoje foi mais um dia de rever a terra verde viva pela chuva que veio pequena, muito menor do que a gente gostaria e precisava. O mato que já era mato quando a gente nem sabia o que era mato, que nunca virou planta porque o mesmo dono secular da terra nunca deixou que ninguém plantasse para ver crescer – como um decreto de aborto à maternidade plena da terra-mãe.
Hoje foi mais um dia de sentir saudade da música feita no interior, tocada ainda ontem por meninos e meninas em louvor da cidade pequenina, uma ode ao sentido da vida que a gente nem percebe que passa sem volta.
Hoje foi mais um dia de acordar cedinho e pegar a estrada amena de domingo, de volta à cidade grande, a tempo de se juntar a parentes e amigos, de dar risadas, de comer comidas deliciosas, de beber boas bebidas, de festejar aquelas mulheres que nunca serão plenamente traduzidas, de olhar para o mundo, para o futuro. De se ver nas crianças que vieram depois de nós, por nós e que vão ficando mais velhas – daqui a mais um pouco serão crianças que virão por nossas crianças.
Hoje foi mais um dia de ficar ouvindo aquelas grandes canções que adoramos, espalhadas pelo som da casa como a trilha sonora de uma vida deslizando numa tarde delicada, que vai caindo para manter avançando a corrida do tempo das nossas vidas.
Hoje foi mais um dia de ir se despedindo dos parentes e amigos que foram saindo para retomar o resto das suas vidas. E a gente vive isso mecanicamente, sem perceber que amanhã o hoje terá sido, já será um dia a menos nos que ainda nos sobram antes do fim.
Hoje foi mais um dia de ir ficando sozinho depois do almoço, de cochilar devagarinho até adormecer naquele sono de poltrona da sala com um vento abençoado soprando – um dos melhores sonos que existem! De entrar numa nuvem e seguir ouvindo aquelas grandes canções que adoramos. De sentir a presença segura de quem aprendi a amar como irmão e amigo num canto mais adiante, o aroma suave de uma bebida e de um puro cubanos circulando no mesmo vento fresco da tarde.
Hoje foi mais um dia de ir sentindo a solidão do tempo que avança e envelhece, que alerta para os tempos mais lentos que já estão chegando, que mostra que o outono é para todos os que têm a sorte de ir ficando enquanto der.
Hoje foi mais um dia de não se livrar do amor interrompido, da dor que não tem tempo, que não tem forma, que dói todos os dias. De não ver o melhor sorriso que não se apaga, de não ouvir a voz que não desaparece e que está gravada num arquivo qualquer, que não abro para não me desmanchar.
Hoje foi mais um dia de ter certeza que, mesmo sem ter, sempre se tem, e que por isso jamais haverá abandono, embora exista uma solidão como nenhuma outra, a solidão do órfão, a quinta-essência mais apurada do estar só.
Hoje foi apenas mais um dia de falar com ela pelas orações – como faço todos os dias –, com a certeza de que que minha voz continua ouvida, compreendida. De que meus medos mais infantis e dores mais adultas são acolhidas naquele abraço que me trouxe ao mundo e que criou e fortificou meu mundo.
Hoje foi mais um dia para ter certeza de que nas horas mais difíceis eu poderei chamar por ela, mesmo que seja um chamar só por chamar, sem socorro visível, mas que trará o sossego para qualquer caminho, a mão segura até mesmo para quando chegar a hora da passagem para o infinito.
Hoje foi mais um dia para ter certeza de que mães deveriam ser imortais de forma universal, para continuar achando que esta é a única falha visível de Deus. Afinal, é dura a lida de manter minha mãe imortal para me esperar na Eternidade. O Criador bem que poderia dar uma mãozinha, diminuindo este vazio, esta saudade serena e quase brutal.
Hoje foi mais um dia de romaria para o amor que percorre a distância celestial entre o meu coração e o da minha mãe, um caminho sem placas e sem indicações, sem explicações, mas que não desaparece nunca, permanece nítido como um luar do sertão, como estrelas na escuridão.
Hoje foi mais um dia para entender plenamente uma daquelas grandes canções que adoramos a vida inteira.
_O seu amor_
_Reluz que nem riqueza_
_Asa do meu destino_
_Clareza do tino_
_Pétala de estrela caindo_
_Bem devagar_
_Oh! meu amor_
_Viver é todo sacrifício_
_Feito em seu nome_
_Quanto mais desejo_
_Um beijo, um beijo seu_
_Muito mais eu vejo_
_Gosto em viver, viver_
_Por ser exato_
_O amor não cabe em si_
_Por ser encantado_
_O amor revela-se_
_Por ser amor_
_Invade e fim_
*Pétala (Djavan)*
Natal, maio de 2018
Heraldo Palmeira – Produtor Cultural