MEMORIAL DE RUBENS –
Gosto de contar histórias e narrar experiências humanas. Por isso, na esperança de estar sendo útil, tomo a liberdade de contar os fatos a seguir.
Na manhã de um sábado qualquer, em meados dos anos 1960, o sol a pino, a equipe amadora e improvisada de futebol de salão da Rádio Cabugi disputava uma partida amistosa na quadra de cimento do Clube Atlântico, dos sargentos da Marinha. O jornalista Rubens Lemos era um dos jogadores. Eu estava presente, mas não jogava, apenas acompanhava os colegas da emissora. Em um lance mais acirrado, disputando a posse da bola, Rubens sofreu uma queda violenta, tendo a sua cabeça, acima da nuca, atingido o chão duro da quadra. O ferimento sangrava muito e me ofereci para levá-lo ao Pronto Socorro, junto com o motorista da Rádio. Fiz-lhe companhia pelo tempo em que foi atendido no Hospital Miguel Couto e depois voltamos ao clube, onde os jogadores ainda celebravam o encontro. A partir da ocorrência estreitamos os laços de amizade que durariam até a sua morte. Ele, grato pela minha solidariedade, e eu grande admirador do seu talento e inteligência. À época, suas intervenções como analista do futebol, pela elegante fluência verbal renderam-lhe o título de “O Comentarista de Classe “. Em virtude das nossas atividades, o futuro só nos permitiu encontros fortuitos, quando relembrávamos, alimentados pelo seu bom humor, momentos desagradáveis e felizes, ocorridos no trabalho da Rádio Cabugi.
Nos idos de 1973, em meio aos meus próprios tormentos, e para minha grande surpresa, o encontrei amarrado a um simulacro de pelourinho, semi despido, a boca arrebentada, duramente vergastado e proibido de adormecer, nas dependências do Doi-Codi, o famoso aparelho de repressão, instalado em Recife. Até então eu nada sabia das suas relações com o fervente movimento político da época. Entretanto, ambos sofríamos as consequências da nossa militância, naqueles intolerantes e violentos “anos de chumbo”.
Até que nos trouxeram para Natal. Viemos no mesmo camburão. Nós, que não éramos terroristas, nunca atiramos uma bomba e jamais disparamos um tiro sequer, algemados e encapuzados como dois facínoras. Réus e culpados por delito de opinião. Aqui, fomos conduzidos para uma cela da Colônia Penal, onde, mais aliviados, partilhamos momentos de otimismo e fé no futuro.
Depois do seu retorno ao jornalismo e o engajamento como membro do Partido dos Trabalhadores, voltei a encontrá-lo. Foi no lançamento do seu livro de poesias, Ciclos da Pedra e do Cão. Assim diz a sua dedicatória: “Alberto da Hora, de horas que permaneceram e vão permanecer. Amigo, companheiro. Meu abraço.”
Um dia, Rubens telefonou-me, anunciando e convidando-me para uma apresentação de tangos, com um grupo típico argentino que visitava Natal. Seria no Teatro Alberto Maranhão. Foi um belo espetáculo, com as canções e as danças do gênero. Na plateia, contando eu e Rubens, exatos 20 presentes. Ele, como jornalista e eu, como admirador, resolvemos ajudar na divulgação do show, que seria repetido na noite seguinte. Não só pelo nosso trabalho, é claro, o boca-a-boca deve ter funcionado. Dessa vez, o Teatro esteve lotado.
O último encontro veio com o anúncio da sua morte e o velório carregado de emoção, depoimentos e lembranças positivas sobre a vida desse autêntico guerreiro.
Participei, como convidado, de uma homenagem póstuma a Rubens e à sua militância política, jornalística e poética em uma Livraria, onde, a pedido de um dos seus filhos, dei testemunho de passagens comuns e li um dos seus poemas. Foi este: “A noite e uma chuva se intimizam, intimidando homens ocultos, nos olhos necessariamente abertos. Há um alerta em todos os sentidos. Em todos os latidos há zelosos cães. – E uma pedra não há para enfrenta-los?” (A pontuação obedece à norma desta frase. O formato do poema é diferente). Levara o meu violão, pensando em cantar a sua dita canção preferida, Pra Dizer Adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto. Porém, tomado pela timidez e pela emoção, não cantei.
É isso…
Alberto da Hora – escritor, músico, cantor e regente de corais
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