MEROS INTELECTUAIS –
Grosso modo, intelectual é o indivíduo que vive da atividade intelectiva/cognitiva ou a ela se dedica. Pode ser a pessoa dada ao estudo literário ou cientifico, independentemente da intensidade ou profundidade a ele dispendido.
Intelectualismo é definido pela maioria dos léxicos como sendo “a predominância num sistema ou num tipo de cultura, dos elementos racionais, isto é, da inteligência e da razão”.
Nesse diapasão e linha de abrangência, o crítico literário (mesmo sem produção própria), o artista plástico, o hermeneuta ou intérprete das leis (ai inclusos os operadores do Direito no nível de jurisconsulto, Magistrado, representante do Ministério Público, Professor de Direito, etc), o historiador, geógrafo, filósofo,sociólogo, antropólogo ou pesquisador em geral, podem – e devem – ser inseridos no elenco dos intelectuais, isto é, dos que se dedicam aos elementos racionais, ao cultivo da inteligência e do entendimento literário ou científico.
Desse modo, o intelectual é aquele que vive do ou para o intelecto. Intelectual, em princípio, não significa gênio da literatura, cientista renomado, escritor famoso.
Latu sensu, o modesto cantador de viola, que vive do seu improviso poético; o compositor de músicas eruditas ou populares; o cronista, o teólogo de qualquer credo; o filósofo diplomado ou autodidata; o poeta clássico, modernista ou de qualquer escola. Todos, indistintamente, dedicam-se à intelectualidade, ao intelecto ou as faculdades intelectuais.
Ademais, a aferição do intelectual e de sua obra independe do aplauso ou vaia de uma elite dominante momentaneamente. Inúmeros escritores, poetas, pintores, tiveram a sua produção intelectual rejeitada e recebida com zombaria ou total indiferença, durante anos seguidos, e somente depois de transcorrido muito tempo de sua morte é que foram reconhecidos e ovacionados.
Afinal, nenhum trabalho intelectual é tão esplendoroso que não contenha falhas, equívocos ou erros. E, por conseguinte, objeto de críticas, às vezes ferozes. A perfeição é dom divino e a unanimidade, segundo Nelson Rodrigues, é um ato de burrice. A versatilidade na busca do saber é tão valiosa quanto a produção do conhecimento.
Segundo os gregos antigos da Escola Socrática, o verdadeiro saber está mais nas perguntas bem formuladas do que nas respostas memorizadas.
Nessa cordilheira, indago: quem foi o maior filósofo da terra? Sem dúvida, Sócrates. Aliás, um simples soldado aposentado e proprietário de terras, com uma vida pessoal desestruturada, que jamais escreveu nada e nunca pertenceu a nenhuma escola ou academia, exceto a dele. Esse autodidata avesso a gramática e a escrita, foi o mestre-mor da filosofia grega. No seu nível intelectual e com formação idêntica (sem aprendizado acadêmico e sem livro escrito) foi o grande Pitágoras.
Jesus, o saber supremo e a oratória inigualável, tido como Deus-Homem por mais de um bilhão de seres humanos e respeitado por todos os seres viventes como sábio, filósofo, e, portanto, intelectual, nunca escreveu uma linha ou concluiu curso de qualquer natureza, diferentemente dos seus opositores fariseus, sacerdotes, escribas e doutores da lei.
Assim, da informalidade, da simplicidade e da ausência de estrangeirismos, afetações e preciosidades, surge a verdadeira criatividade intelectual.
Se um intelectual insiste em comunicar-se num jargão que não pode ser compreendido, exceto por “doutos e letrados”, então o leitor tem o direito de concluir que o intelectual está disfarçando sua ignorância ou revelando seu desprezo. De igual modo, revela-se pedantismo elitista ou blefe a exigir uma formulação alternativa e fundamentada. Mesmo porque todos os leitores são igualmente importantes, não somente por princípio político, mas, essencialmente, por princípio epistêmico.
Os intelectuais produzem conhecimento e o público decide o que fazer com ele, valorando-o ou desprezando-o.
Karl Popper esclarece que uma reivindicação do conhecimento é sempre um apelo à autoridade, o que quer dizer que, se alguém declara saber algo, está procurando deferência à sua autoridade. Para tanto, o intelectual autêntico e respeitado é o que transmite sem complicações e preciosismos, podendo ser compreendido pelos não especialistas.
A simplicidade – saber que sabe apenas uma partícula do imenso saber humano – e a humildade – valorizar o outro e mudar de opinião se necessário – são os alicerces do intelectual verdadeiro. Sem esses requisitos, aliados à independência preconizada por Immanuel Kant, o intelectual corre o risco nefasto do alinhamento político incondicional como dos filósofos Georg Lukács (húngaro) e Martin Heidegger (alemão) que respectivamente foram defensores intransigentes dos genocidas Stalin e Hitler. Para eles, ambos eram heróis…
Devemos, desse modo, nos precaver dos intelectuais negligentes em suas pesquisas, impressionistas em suas observações e, particularmente, “dos tendenciosos em seus julgamentos”. Algumas teses e ensaios focalizam o óbvio e o ululante, engessados pela ideologização ou pela absoluta ausência de inovação e, pior ainda, pela excessiva vaidade e falta de independência.
A filósofa Marilena Chauí, em artigo no Jornal de Ciência da SBPC, de 20/11/2009, intitulado “Intelectual Engajado: um ser silente ou animal em extinção?”, preleciona: “O projeto histórico moderno apostou na autonomia nacional das artes e do saber (…) determinante para o surgimento da figura do artista e do pensador independentes das instituições eclesiásticas, estatal e acadêmico-universitárias, com autoridade teórica e prática para criticar a ordem vigente”.
Em tese, por conseguinte, o desafio retórico do intelectual é resguardar uma perspectiva crítica sem parecer alarmista ou reacionário, plantando idéias aptas a reconfigurar grupos e amalgamar o campo político. Seguindo o adágio popular que “nada se cria, tudo se copia”, parafraseado de Lavoisier que dizia “na natureza nada se cria, tudo se transforma”, as produções intelectuais, em geral, inovam muito pouco. Algumas obras são mais importantes pelas citações ou notas de rodapé que pelo que escreve o autor, apesar da megalomania de alguns autores.
Daí que se faz oportuna a afirmação do eminente escritor Steve Fuller: “a personalidade paranoica sofre de um complexo de perseguição provocado pela megalomania, uma espécie de ‘macrocefalia’ que normalmente leva o intelectual a exagerar sua própria importância”. O intelectual paranoico se julga o próprio Deus do Olimpo reencarnado e como tal não perde tempo com os “seres inferiores”.
No entanto, Raquel de Queiroz – eminente, combativa e consagrada intelectual –, com extrema humildade, dizia: “escrever é um martírio”. Também dizia: “nunca reli uma página depois de escrita que me deixasse satisfeita”. Mais ainda, referindo-se às suas obras, afirmava: “com tanto livro ruim no mundo, mais um ou dois não fazem diferença”.
Aliás, os grandes sempre são humildes e complacentes com os menos aquinhoados com a iluminação literária. Escritor sem carisma como Carlos Maul, da geração de Olavo Bilac, foi impiedoso crítico e perseguidor dos modernistas, dentre os quais muitos se tornaram referência nacional, diferentemente do seu algoz.
O famoso dramaturgo Nelson Rodrigues, no início da carreira, foi espinafrado pelo crítico Bandeira Duarte, do Jornal “O Globo”. Nelson, todos conhecem, e Bandeira, quem é?
Dizia Montaigne: “mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia”. Formar o espírito é uma maneira de formar a vontade, visto que o fim da educação intelectual é, sobretudo, a formação do juízo (a aptidão lógica, o espírito de discernimento, o rigor no encadeamento das idéias, todos acompanhados do bom-senso, previsão das exceções, etc). A análise genuinamente intelectual, portanto livre e despreconceituosa, proíbe apontar um dos lados de capaz (apto) e o outro de incapaz (inapto). Todos, sem exceção, têm a sua verdade, a sua consciência e o seu valor personalíssimo, que convergem para a completude e não para se tornarem ilhas de auto-suficiência. O debate sadiono entanto é o centro da atividade, o verdadeiro palco e contexto onde atuam os intelectuais despretensiosos.
Sei, entretanto, que certos intelectuais marqueteiros vendem a sua “obra” como é vendida a Coca-cola que, mesmo sendo uma xaropada sem nenhum nutriente real, é aceita, consumida e aplaudida pelas massas.
Afinal, a propaganda é a alma do negócio. Os sofistas (escola grega de grandes sábios), há 2.500 anos são execrados como malandros e falaciosos. Mas a versão não corresponde à realidade dos fatos. Reza a história que o sofista Protágoras, combatido pela elite grega comandada por Sócrates, era um excepcional filósofo, autor da primeira gramática da língua grega, consultor literário e um dos pioneiros da implantação da linguagem escrita na Grécia. Apesar dos notórios méritos, Protágoras e seus discípulos teriam sido expulsos do foro de Atenas por Sócrates que, também usando de sua influência pessoal (filho nato da Grécia, herói de guerra, professor de muitos e proprietário de terras), destruiu a sua imagem profissional e as suas obras. Eis como a mentira dita repetidas vezes, principalmente quando divulgada por pessoa convincente ou influente, pode passar a ser tida como verdade, transformando o bom em ruim, o culto em analfabeto, ou vice-versa. Goebbels sabia disso…
De fato, no dizer de Marcos Rey: “o êxito literário fica um pouco na razão direta das amizades do peito e da quilometragem promocional”.
Em conclusão: adoto a magistral assertiva do já citado professor e sociólogo norte-americano Steve Fuller: “os verdadeiros filósofos evitam tanto o otimismo empresarial (meio explorador) estimulado por Protágoras quanto o pessimismo paranoico (meio inquisidor) a que Sócrates era propenso. Aqueles que não conseguem navegar entre esses dois extremos formam a fileira dos meros intelectuais”.
José Adalberto Targino Araújo – Professor, Procurador do Estado, ex- Promotor de Justiça e membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Ex-Presidente da Academia de Letras Jurídicas do RN, Jornalista e Membro IHGRN