Graciano Mello. Ninguém o chamava de Graciano. Todos o chamavam Mello; até minha avó, que se chamava Maria Emília e que ele chamava de Mila. Morreu em 25 de abril de 1950, com 75 anos. Fazendo as contas, nasceu em 1875.
Tinha 20 anos quando ele morreu. E minha lembranças dele são permanentes, mesmo depois de 65 anos de sua partida.
Meu relacionamento com ele era perfeito. Convivíamos muito bem. Nunca o vi estressado, afobado, discutindo ou brigando com alguém. Era uma pessoa singular. Diferente. Talvez houvesse a influencia do nome, que não era e não é, comum. E gostava de nomes incomuns. Minha mãe se chamava Nicenia, meus tios, por ordem de chegada, Pelúsio, Protásio e Veríssimo. Tentei descobrir a origem desses nomes, mas o Google e os dicionários que consultei falharam. Minha tia, Maria Vitória, que todos chamávamos de Tóia, era que tinha o nome mais simples. Singular, inclusive, no tamanho da família; pequena, para aqueles tempos.
Desde muito cedo passava muitos dias em sua casa, especialmente nas férias. Conversávamos muito e eu o acompanhava em seus afazeres diuturnos. Começávamos o dia indo ao mercado. Não havendo geladeiras (na realidade, refrigerador; geladeira existia, e ele comprava gelo, que era vendido de porta em porta pela firma G. Lettieri, que tinha fábrica de gelo em barras, conservado em pó de madeira), todos os dias comprava os alimentos do dia. Cinco e meia da manhã, acordava e me chamava para acompanhá-lo. Achava ótimo, apesar da madrugada. Entre as compras usuais, sempre comprava “uma quarta de queijo de coalho”, que cortava, à mesa, em pedacinhos bem pequenos, dizia, para render. Era seguro com o seu dinheiro, talvez pela infância e juventude difícil.
Mas não era pão duro, nem ambicioso. Lembro uma estória sua no tempo da guerra. Tinha uns mamoeiros no quintal e vendia parte da produção a um comerciante no Mercado, quinhentos reis cada. Com a guerra, os americanos, consumo aumentando, os preços subindo, o comprador, honesto, disse: seu Mello, estou ganhando muito dinheiro com os seus mamões e de hoje em diante quero lhe pagar mil reis por cada um. Reação de meu avô: não aceito, é um roubo. Se quiser continuar comprando, tem que ser quinhentos reis.
Nascido em Campo Grande, veio cedo para Natal estudar e aqui ficou. Era comerciante e tinha uma loja, na esquina da Vigário Bartolomeu, com a Ulisses Caldas – Natal Moderno. Em frente, o Café Majestic; ao lado, a Farmácia de Cloro; na outra esquina, em diagonal, o Cinema Royal. Embora a loja fosse perto, morava onde hoje é o Banco do Nordeste, no começo da rua, se vestia com elegância. Casimira, colete, colarinho duro com botão de ouro, gravata, riunas (um tipo de botina com ganchos para passar o cordão). Fizesse sol ou chuva, o ritual era o mesmo. Com horário cumprido à risca.
Vendia de tudo, ou quase tudo. Pela localização, muitos de seus clientes eram estudantes do Atheneu. Papel almaço, tinta Sardinha, canetas (de madeira e a pena era colocada numa ponta), penas, cadernos, borracha, mata-borrão, tudo para a escola. Um bom sortimento de armarinho. Também vendia material para ornamentar caixão de defuntos, inclusive o tecido especial para forração. Instrumentos musicais, flautas, violões, saxofones. Eudes Moura me contava que passou a vida namorando com um sax exposto na vitrina da loja.
Eu sempre o acompanhava e passava o dia com ele. Ajudando, ou atrapalhando, e no fim do dia ele me dava mil reis. Uma fortuna! E, de vez em quando, lhe pedia mais mil reis para ir cortar o cabelo com Pedro Chinês, que tinha um barbearia pertinho da loja. E também um dinheirinho para um lanche, no café em frente. Ou um caldo de cana com pão doce, no Mercado.
Lembro-me quando ficou doente. Os recursos médicos eram insipientes. Ficou em casa, onde recebeu tratamento. Acho que foi um AVC. Chorei sua partida e até hoje o lembro. Podia esquecer um tempo desses?
Dalton Mello de Andrade – Ex secretario de Educação do RN