O norte de Moçambique vive o auge de uma onda de violência que tomou a região nos últimos três anos, quando insurgentes islâmicos passaram a promover assassinatos, decapitações e sequestros de mulheres e crianças em vilarejos na província de Cabo Delgado, rica em rubi e gás natural.
Veja abaixo reportagem sobre processo de membros do Estado Islâmico nos EUA
Mais de 50 pessoas foram decapitadas ao longo de três dias de violência. Desde 2007, cerca de 2 mil pessoas foram mortas e mais de 430 mil ficaram desabrigadas no conflito na província de maioria muçulmana, religião de 1 em cada 5 moçambicanos.
A entidade condena a violência do grupo al-Shabab, ligado ao Estado Islâmico (EI), mas também critica duramente o governo de Moçambique, acusando-o de combater a violência com atrocidades extrajudiciais, entre elas tortura e perseguição. O governo nega as acusações.
Membros do al-Shabab, que também falam português em alguns vídeos de propaganda, têm se aproveitado da pobreza e do desemprego locais para recrutar jovens em sua luta a fim de estabelecer um domínio islâmico na região, enquanto muitos moradores dali reclamam que ficam alheios ao desenvolvimento econômico em torno das indústrias de gás e rubi.
Em abril, um vídeo filmado com um telefone celular em Muidumbe se tornou uma poderosa evidência de que um violento conflito na região mais ao norte de Moçambique agora está em campo aberto, de forma espetaculosa e alarmante.
Nas imagens, homens armados caminham calmamente pela grama alta, contornando um grande edifício branco, aparentemente não incomodados com o som de tiros ao fundo.
A maioria carrega fuzis automáticos e usa roupas que parecem uniformes do Exército moçambicano. Alguns tiros são disparados perto dali, e alguém grita como que em resposta: “Allahu Akbar” (Alá é grande).
Um segundo vídeo mostrava um homem morto, aparentemente um policial, deitado sobre uma poça de sangue. A câmera então revela outro cadáver e depois outros dois corpos e, finalmente, uma grande pilha de armas automáticas em um depósito militar.
Essa filmagem foi feita no porto estratégico de Mocímboa da Praia, que foi breve e dramaticamente tomada por militantes em março. Dois dias depois, eles tomaram outra cidade importante, Quissanga.
Esses ataques militares ambiciosos são a prova de uma mudança radical na estratégia do grupo conhecido localmente como al-Shabab (A Juventude ou Os Jovens, em árabe). Apesar do mesmo nome, ele não tem ligações conhecidas com o grupo al-Shabab na Somália, este afiliado à facção Al-Qaeda.
Nos últimos dois anos, o grupo jihadista moçambicano operou nas sombras, atacando vilarejos remotos em toda a província, fazendo emboscadas contra patrulhas do Exército em estradas isoladas e espalhando terror em comunidades rurais, forçando quase 200 mil pessoas a fugirem de suas casas.
O EI reivindicou a responsabilidade por uma série de ataques recentes em Moçambique, e parece estar promovendo seu envolvimento com o grupo jihadista como parte de uma operação de “franquia” com a qual expandiu sua presença (simbólica ou não) em várias partes de África.
A ideia de que a ofensiva em Cabo Delgado é, no seu cerne, parte de um movimento jihadista global, ganhou força entre os próprios militantes do al-Shabab moçambicano, que juraram publicamente lealdade ao EI no ano passado.
O relacionamento entre os dois grupos oferece vantagens para ambos os lados.
Mas um vídeo de um líder dos combatentes, que circulou neste ano com vigor por WhatsApp em Moçambique, oferece uma explicação muito mais detalhada para as ações do grupo.
“Ocupamos (as cidades) para mostrar que o governo é injusto. Ele humilha os pobres e dá o lucro aos patrões”, diz um homem alto, sem máscara, de uniforme cáqui, cercado por outros insurgentes.
O homem fala frequentemente sobre o Islã e a sua aspiração por um “governo islâmico, e não um governo de descrentes”. Ele cita também acusações de abusos por parte dos militares de Moçambique e se queixa diversas vezes de supostas injustiças do governo.
Especialistas entrevistados pela BBC dizem que o avanço da insurgência islâmica em Moçambique é bastante semelhante ao surgimento do Boko Haram no norte da Nigéria, como um grupo marginalizado que explora queixas locais, aterroriza comunidades e oferece um caminho alternativo para jovens desempregados frustrados com um Estado controlado por autoridades corruptas e negligentes.
“Esse vídeo é bastante significativo”, diz Eric Morier-Genoud, pesquisador especializado em Moçambique.
“Ele explica que é um local, de Moçambique, negando as acusações de que são todos estrangeiros. E denuncia o Estado como injusto e ilegítimo”, afirma Morier-Genoud. Para ele, o fato de a maioria dos rostos presentes neste vídeo não estar de máscara revela “uma clara busca por confiança”.
“Essa foi a primeira vez que falaram à população”, diz o historiador moçambicano Yussuf Adam. Para ele, o vídeo dá mais peso ao argumento de que o conflito em Cabo Delgado é, no fundo, alimentado por questões locais.
“O Exército, desde o início, espanca as pessoas, as leva para a prisão e as tortura. Há muita islamofobia (na província de maioria muçulmana de Cabo Delgado). São discriminados porque são do norte, e as outras pessoas pensam que elas são burras.”
Segundo Adam, “o problema é que temos um monte de jovens, e jovens sem empregos. Se resolvermos o abuso de violência, a corrupção e se tivermos um sistema judicial sério, tenho certeza de que resolveremos isso rapidamente”.
No início, o governo moçambicano tentou minimizar a insurgência, classificando os militantes como criminosos e bloqueando o acesso de jornalistas e ativistas à região. Mas isso tem mudado.
“Temos visto uma mudança na política negacionista. A maioria da sociedade e dos políticos agora admite que temos uma insurgência islâmica”, afirma Morier-Genoud.
Mas a ofensiva não tem obtido sucesso em retomar o controle da região e tem sido alvo de diversas acusações de violações dos direitos humanos.
“As violações contra a população civil devem cessar imediatamente. As autoridades moçambicanas devem garantir que nenhum suspeito de crime, incluindo membros das forças oficiais de segurança, fique impune. Eles devem iniciar uma investigação independente e imparcial sobre esses graves abusos e, se houver provas suficientes, processá-los em julgamentos justos perante tribunais civis comuns”, disse Deprose Muchena, diretora da Anistia Internacional para o Leste e o Sul da África.
Um vídeo analisado pela entidade, falado em português e shangaan (língua do sul moçambicano), aponta que pessoas com uniformes oficiais de Moçambique têm torturado, decapitado e executado pessoas sem julgamento, além de escondido corpos em valas comuns da região.
O governo de Moçambique nega as acusações, e afirma que os criminosos presentes em vídeos, como esse analisado pela Anistia Internacional, são combatentes jihadistas vestidos com fardas do Exército.
A insegurança vai além dos vilarejos locais. Teme-se que o conflito se espalhe para o país vizinho Tanzânia e talvez até mesmo para a África do Sul.
Empresas estrangeiras do setor de gás — interessadas em investir bilhões nos campos de gás off-shore descobertos na costa de Cabo Delgado — estão agora reduzindo suas operações, tanto por causa da crescente insegurança quanto por causa da queda dos preços da commodity.
Diversos pesquisadores e analistas avaliam que, fundamentalmente, a solução para o conflito está na presença mais consistente do Estado na região e em ações transparentes para lidar com queixas econômicas e sociais profundamente arraigadas na região, incluindo acesso justo à terra, oferta de empregos e participação nas receitas futuras com a extração de gás e rubi.
“O governo precisa saber que é extremamente necessário que os recursos naturais de Moçambique sejam usados para o bem do seu povo, e não para gerar corrupção”, afirma o bispo de Pemba.
Curiosamente, as organizações que lutaram contra Portugal pela independência , como a Frelimo e a Renamo, recrutavam jovens com a mesma retórica: “as autoridades coloniais portuguesas estão tomando nossa riqueza e a independência nos trará mais igualdade”.
“É quase sinistro o timing disso. Tivemos uma das maiores descobertas de gás natural e, de repente, você tem uma insurgência. É muito difícil não ver uma ligação entre isso”, afirma Liesl Louw-Vaudran, pesquisadora do Instituto de Estudos de Segurança.
Nas últimas décadas, Cabo Delgado viu um fluxo migratório de fundamentalistas cristãos e muçulmanos e de agências religiosas internacionais de caridade tentando converter a população local.
E mais especificamente nos últimos anos, Moçambique tornou-se cada vez mais corrupta, e o seu litoral norte tornou-se um importante centro de contrabando de marfim, madeira, heroína e rubi, com o envolvimento da polícia e de outros funcionários públicos.
Os chefões do contrabando local atraíram jovens militantes para suas organizações, oferecendo bons salários.
A fronteira próxima com a Tanzânia não tem controle de agentes de segurança, e sempre houve ali um grande movimento de pessoas. Isso se ampliou com tráfico de pessoas, principalmente do Quênia, Somália e dos Grandes Lagos.
Já havia jovens tanzanianos na comunidade de vendedores ambulantes de Mocímboa da Praia que passaram a fazer parte desses grupos criminosos.
Depois da morte, em 2012, do clérigo muçulmano Aboud Rogo Mohammed (acusado de apoiar a Al-Shabab na Somália) no Quênia, seus seguidores ficaram sob intensa pressão local e migraram para o sul, até chegarem a Cabo Delgado em 2015.
A renda também ajudou a transferir clérigos radicais para Moçambique.
Cabo Delgado é majoritariamente muçulmana e os novos pregadores islâmicos, tanto estrangeiros de países da África Oriental quanto moçambicanos formados no exterior, estabeleceram mesquitas e argumentaram que os líderes religiosos locais eram aliados da Frelimo — que desde a independência é o partido da situação e principal força política do país — e da sua apropriação de riquezas.
Algumas dessas novas mesquitas passaram a fornecer dinheiro para ajudar a população local a iniciar negócios e gerar empregos, enquanto os islâmicos argumentam que a sociedade seria mais justa sob a sharia (lei islâmica).
Em 2015, houve confrontos violentos na região quando a polícia e líderes tradicionais islâmicos tentaram barrar o avanço dos fundamentalistas, que passaram então a treinar milícias. Estas estariam depois envolvidas no ataque inicial que abriu o atual confronto, em Mocímboa da Praia, em 2017.
Moçambique, que se tornou independente de Portugal em 1975, ainda sofre os efeitos de uma guerra civil de 16 anos que terminou em 1992.
As tensões permanecem entre o partido no poder, Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), e o antigo movimento rebelde da oposição, Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). E a corrupção tornou-se uma grande preocupação no país.
A descoberta de campos de gás na costa de Moçambique em 2011 deve levar a grandes transformações na economia de uma das nações mais pobres da África. Mas apesar do recente crescimento econômico, mais da metade dos 24 milhões de moçambicanos continuam a viver abaixo da linha da pobreza.
Ao todo, 37% da população vive em área urbana, grande parte na capital Maputo; a expectativa de vida de homens e mulheres não passa de 60 anos e a taxa de fertilidade gira em torno de 5 crianças nascidas para cada mulher em idade reprodutiva.
Filipe Nyusi, do partido no poder, Frelimo, tomou posse como presidente em janeiro de 2015 e assumiu mais um mandato de cinco anos em 2020.
Ele sucedeu o ex-presidente Armando Guebuza como líder do partido, representando uma mudança no comando da Frelimo, que domina a política em Moçambique desde a independência de Portugal em 1975.
Durante a campanha eleitoral, Nyusi prometeu transformar Moçambique, país de 30 milhões de habitantes, com a exploração dos campos de gás que têm atraído diversas companhias estrangeiras.
O setor de serviços representa mais da metade do PIB (soma de todas as riquezas produzidas) do país, com 57% do total, seguido da agricultura (24%) e da indústria (19%). E os principais produtos de exportação são: briquete de carvão, coque, alumínio e gás, principalmente para Índia, Holanda e África do Sul.
Segundo dados do governo, a língua oficial do país é o português, falado por 17% da população, mas a mais falada é a makhuwa, por 26% dos moçambicanos.
Juntas, as religiões cristãs são dominantes na população (católicos, 27%, cristãos sionistas, 16%, e evangélicos, 15%). O islamismo é praticado por 19% dos habitantes.
Fonte: G1
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