MUITO MÍSTICO –
A bela comuna de Orvieto, com seus pouco mais de 20 mil habitantes, está a cerca de 100km de Roma. Fica na Umbria, “a mais mística das regiões italianas”, foi o que me disse a também bela Francesca, minha professorinha de italiano na Divulgazione Lingua Italiana – DILIT de Roma. “Você deveria conhecer. Eu amo”, completou a minha insegnante, num tom que devaneei como dúbio entre sugestão e convite. Tudo isso – e o que vem a seguir – aconteceu no já distante ano de 2013, desde já eu registro.
Acabei indo a Orvieto, numa expedição arranjada pela minha escola de italiano, a citada DILIT, sem Francesca, mas com dois frades Premonstratenses, ordem fundada em 1120 por São Norberto (1075-1134), ambos chilenos, que também estavam em Roma para aprender o idioma de Dante Alighieri (1265-1321). Eram místicos. Embora não na forma de “mistério” que eu inicialmente esperava, confesso.
Como consta do meu surrado “Guia Visual Folha de São Paulo – Itália” (PubliFolha, 1998), “qualquer que seja o ângulo que se escolha para admirar Orvieto, ela se revela uma linda cidade. Sobre um platô, a 300 metros de altitude, tem a seus pés uma planície coberta de vinhedos. Em seu centro histórico, ressalta-se o Duomo, uma das mais grandiosas catedrais gótico-românicas da Itália”. Bela e mística, Francesca tinha razão.
De toda sorte, duas coisas me marcaram nessa excursão a Orvieto. Duas experiências “místicas”, uma de fundo milenar e outra contingencial, mas também deliciosa para mim.
Orvieto é uma cidade muito antiga. Do tempo dos etruscos, dizem. O nome Orvieto seria até uma corruptela de Urbs Vetus (ou “cidade antiga”, em latim). Foi abandonada, destruída e reconstruída através dos séculos. Ademais, seu subsolo é feito de tufo, um tipo de rocha vulcânica muito maleável. E o fato é que, já no século XX, foram redescobertas inúmeras cavidades/edificações no subsolo de Orvieto. Coisas milenares até. Para lá de mil. Por toda a cidade. E a aventura mais interessante ali é, sem dúvida, descer por uma “Orvieto Subterrânea” (o nome já diz tudo), o que se faz por um acesso na praça da Catedral. Foi uma experiência claustrofóbica, mas também – e talvez até por isso – mística. Muito mística.
A segunda revelação em Orvieto foi contingencial. Uma coincidência, diriam os céticos. Lembro-me de que, ao sair dos subterrâneos para flanar pelas ruelas da cidade, acabei topando com uma livraria que vendia suas obras num beco, por detrás de um pórtico antigo. Passei por aquele pórtico à procura de Andrea Camilleri (1925-2019) e do seu detetive Salvo Montalbano, que me interessavam na ocasião. Mas, por apenas 99 centavos de euro, restei achando Marcelo Simoni (1975-) e sua então recentíssima novela “I soterranei della cattedrale” (“Os subterrâneos da catedral”, no nosso idioma), numa edição de bolso da Newton Compton Editori de 2013. Não conhecia o meu xará, que depois vim a descobrir ser autor de maravilhas como “Il mercante di libri maledetti” (“O mercador de livros malditos”) e “La biblioteca perduta dell´alchimista” (“A biblioteca perdida do alquimista”), entre outros títulos. Essa temática é tudo. É mística.
Na minha edição de “I soterranei della cattedrale” consta: “Urbino, 1789. O cadáver do professor Lamberti, docente de filosofia à universidade, é encontrado no interior da catedral. A hipótese é que tenha caído do andaime posto para reconstrução da cúpula, destruída por um terremoto. Mas Vitale Federici, o seu aluno mais brilhante, intui imediatamente que há naquela morte algo não esclarecido. Inicia então a sua investigação pessoal sobre os últimos dias de vida de Lamberti, até que vem a conhecer um fato desconcertante: o homem estava na trilha de um antigo templo dedicado às ninfas, escondido no subsolo da cidade. Vitale se apaixona imediatamente pelo mistério, mas a busca o coloca logo defronte a uma inquietante verdade: Lamberti deve ter sido assassinado. Mas por quem? Tantos são os suspeitos, e todos têm interesse em ter Vitale longe de um segredo que não deve ser revelado…”.
Comprei um livro e ganhei o seu cenário. Vi as imagens, vivas, quase reais. Misturei Orvieto com Urbino, por sinal também uma comuna edificada em um platô, embora já na região italiana do Marche. Esse livro doravante me acompanhou na minha estada em Roma. Enfronhei-me nas estórias e nos romances como se protagonista fosse. E até vi Francesca me transportar para Urbino, desta feita sem dubiedade. Foi místico. Muito místico mesmo.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL