MUITO OBRIGADO. E ATÉ UM DIA – Marcelo Alves Dias de Souza

MUITO OBRIGADO. E ATÉ UM DIA –

​Nunca fui tão feliz quanto naquele tempo, quando todos que eu conhecia eram vivos. Criança e adolescente, o meu lugar era o Colégio Imaculada Conceição, da minha tia Carmen. Era deixado ali todos os dias, muito cedinho. Assistia e atrapalhava as aulas. Jogava bola na célebre quadra coberta e onde mais podia. Fazia judô com meus primos. Comia na velha cantina ou na mesa das irmãs. Corria até a casa dos meus avós na mesma avenida Deodoro. E até me aventurava, sem o conhecimento da tia diretora ou de meus pais, por uma Cidade Alta cheia de rostos e gostos duvidosos. Voltava para casa só tarde da noite, fatigado, qual o elefante do poeta, mas feliz. Muito feliz. Naquele tempo em que todos que eu conhecia eram vivos.

​Nunca ganhei tanto como naquele tempo. Aprendi a contar e a escrever. Descobri um pouco da geografia dos povos e mais ainda da nossa própria história. Entendi que a vida se faz com ciência, inspiração e trabalho. Passei a não duvidar dos bichos, com exceção dos humanos. No Colégio Imaculada Conceição da minha tia Carmen, com as santas irmãs doroteias e os nossos muitos professores, seres cheios de luz, fiz amigos para toda a vida. Num tempo em que todos que eu conhecia me ensinavam a ter fé.

​Tive de sair dali para a Universidade. Todos nós – meus primos e meus colegas de classe, de bola e de brigas – tivemos de fazer isso um dia. Fui trabalhar fora. Fui estudar mais longe ainda. Viajei muito. Acho que até demais. Mas voltei ao Colégio Imaculada Conceição muitíssimas vezes. Para dar chutes naquela velha quadra coberta. Ou para levar e trazer tia Carmen de sua visita quase diária à casa da sua irmã (e também minha tia) Neusa. E nessa época quase todos que eu conhecia ainda eram vivos.

​Para a irmã Carmen, tenho certeza, encerrou-se uma etapa da vida com o fechamento do Colégio Imaculada Conceição. Se foi a Cristo e a Santa Paula Frassinetti que ela dedicou sua devoção, foi ao CIC e à comunidade das Irmãs Doroteias que ela dedicou toda sua vocação. O seu amor, que era também enorme, ela dividiu com todos nós, familiares e amigos.

​Agora, no ciclo e círculo de Deus e da vida, veio o momento de ela partir para a sua última viagem. Pela sua idade avançada, 91 anos completos, a indesejada veio a galope. A tia que nos ensinou os primeiros passos, de repente parou de andar. A madre que, mesmo nos momentos mais injustos da vida, praticou o silêncio apenas por opção, de repente desaprendeu a falar. Ficou cada vez mais debilitada. Foram quatro ou cinco meses, uma dia após o outro, lutando contra a solução inexorável. Vi o empenho das minhas primas para que nada faltasse à querida tia. Na nova casa da rua Açu, vi a luta diária das irmãs doroteias (sua outra família, por opção) e das suas alegres cuidadoras. Assisti aos cuidados da direção e da equipe médica nos seus dias de internação na Casa de Saúde São Lucas. E nem preciso falar da preocupação constante, mesmo sem saber de muita coisa, mas intuitiva, da minha mãe. Eles e elas se doaram e fizeram de tudo. Mas não deu. Tia Carmen foi para junto dos pais, dos irmãos de sangue já falecidos, das suas irmãs de fé já desencarnadas, de Santa Paula e de Deus.

​De minha parte, só tenho a agradecer a tia Carmen e a Deus por ter estado muito próximo dela nos seus últimos dias. É verdade que aquele olhar que me seguia, pedindo não sei dizer o que, me cortava o coração. Também não foi fácil esconder da minha mãe a gravidade da coisa. E ainda me pego chorando ao lembrar – e sentir, num misto de aflição e saudade – os seus últimos momentos no hospital. Mas tia Carmen, mesmo nesses últimos meses de despedida, ainda me deu e ensinou muito: reuniu de novo nossa família, me deu muitos sorrisos enquanto alisava o nosso cão (que ela tanto amava), me deu esperança de sairmos daquele martírio hospitalar, me fez querer ser bom e me permitiu retribuir, ainda que minimamente, tudo aquilo que ela – numa mistura de mestra, tia, madrinha e segunda mãe – fez em abundância por mim.

Ontem voltei à casa das irmãs doroteias, talvez inconscientemente querendo que tudo isso não passasse de um sonho, e eu ainda pudesse pegar tia Carmen para dar mais uma volta de carro pelas estradas e esquinas da nossa memória. Espero um dia poder encontrá-la novamente. Quando todos aqueles que eu conheci estarão juntos de novo.

 

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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