Diógenes da Cunha Lima
Abaporu! do latim, aba, gente; poru, que come. Então, abapuru: comedor de gente.
A mulher é arte antiga e arte moderna, sabe de artes. Américo Vespúcio registrou as belas índias potiguares, em 1501, comendo um mancebo marinheiro. O primeiro prato feito no Rio Grande do Norte foi, pois, português na brasa.
A mulher foi ação e objeto da Semana de Arte Moderna de 1922, que produziu mudanças significativas na cultura brasileira. O processo histórico e social ocorria no plano literário no Rio de Janeiro com Manoel Bandeira, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira. Em verdade, o núcleo do movimento, em São Paulo, era o chamado Grupo dos Cinco, com duas mulheres (Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, e mais Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade). Se acrescentarmos a presença de Guiomar Novaes, teremos paridade.
O modernismo na América hispânica é bem anterior. Câmara Cascudo deu-me de presente a obra completa de Rubém Darío, dizendo que ele era pioneiro, até da palavra modernismo, em 1888, com a publicação de Azul. Muitos outros pioneiros existiram, como Leopoldo Lugones na Argentina e Amado Nervo no México.
O ano de 1922 foi revolucionário. É em setembro, a comemoração do centenário da independência do Brasil. No plano literário, houve a primeira edição da obra cosmográfica Ulisses de James Joyce. Entre nós, é o ano da publicação de Mulher nua, de Gilka Machado (1893-1980), pioneira na publicação de erotismo feminino. É o ano da revolta do Forte de Copacabana.
Como deveria ser a mulher moderna? Orienta Menotti del Picchia: “queremos uma Eva ativa, bela, prática, útil ao lar e na rua, dançando tango e datilografando uma conta corrente…” Acrescenta depois: “mulher companheira, sadia, valiosa.” Já Mário de Andrade qualificava como queria a nova mulher: “ágil, alegre, desportiva, dinâmica… e não serva, chorona, viciada em tóxicos.” Vale lembrar que naquele tempo a mulher só poderia comparecer a reunião social acompanhada, e que os homens mudavam de assunto à aproximação de meninos e mulheres.
Tudo isso era o que pensava Nísia Floresta Brasileira Augusta, noventa anos antes, pré-história da visão moderna da mulher. Esses princípios basilaram a criação da Escola Doméstica de Natal, oito anos antes da Semana.
Ninguém mais importante na Semana do que Tarsila do Amaral (1886-1973), belíssima, com Oswald de Andrade tentando conquistá-la, em 1921 como a viu, em seu apartamento, Luís da Câmara Cascudo. Tarsila casou com Oswald, formando a famosa parelha da modernidade, em 1926. Pintou o Abaporu, a mais famosa e valiosa obra de arte da pintura brasileira (adquirida em leilão por um colecionador argentino por quinhentos mil dólares). Anita Malfatti (1889-1963), como Tarsila, de raízes e estudos europeus. Com a Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti fez eclodir o movimento com a crítica de Monteiro Lobato e conseqüente e exacerbada defesa de Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade.
Monteiro Lobato era um homem estranho e de extremos. Variava do talento criador, de profunda compreensão humana, ao mais tolo preconceito machista. Assim se expressou : “a mentalidade do homem evolui. A da mulher não. O cérebro da mulher não digeri as idéias recebidas. Conserva intactas as noções que lhe inculcam em criança ou moça. Conheço inúmeras que não passam de bichos ensinados.”
A Semana constou de uma exposição de Artes Plásticas e três recitais de literatura e música e pregou, se não a igualdade dos sexos, a mais suprema das artes entre eles, a arte de conviver.
Guiomar Novaes (1895-1979) revolucionou a música interpretando Villa-Lobos no Teatro Municipal de São Paulo em 1922.
A revista Klaxon, mensário da Arte Moderna, que não tinha diretores, mas apenas correspondentes, como Sérgio Buarque de Holanda (no Rio) e depois Joaquim Inojosa (no Recife), desafiava: “o Brasil é que se esforçará para compreender Klaxon.” Verdadeiramente, a revista e a Semana revolucionaram o País. O Brasil precisava compreender a música de Villa-Lobos; as artes plásticas de Brecheret e Di Cavalcanti; a universal genialidade do filme O garoto de Charles Chaplim (primeiro longa metragem do Carlitos, 1921), considerado pelos partícipes da Semana como obra-prima da modernidade, a crítica de Sérgio Miliet; a mostra publicitária a começar pela capa da Klaxon; o valor patriótico sem perder contexto universal e que a arte é importante como o ar e o pão no dizer de Mário de Andrade. Mário pretende escrever como fala o povo. A arte tinha tal importância que era superior a tudo. O poeta Guilherme de Almeida conceitua: “a minha existência é um plágio da minha arte.”
O poeta Martins Fontes foi considerado ultrapassado. Mário de Andrade salva-lhe apenas uma quadrinha do livro Arlequinada. Ainda assim, considerando-a avant la lettre machista:
Mamam os filhos, às vezes /sem parar, sem ter canseira. / Mamam na mãe nove meses / e no pai a vida inteira.
Muitas outras mulheres fizeram Arte, como Zina Aita e Regina Graz, como Lucília, interpretando o marido Villa-Lobos. É certo que a arte da Semana fez crescer a mulher brasileira.
Diógenes da Cunha Lima – Escritor, poeta e presidente da Academia de Letras do RN
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Sobre as mulheres nos dias de hoje