NÃO É FICÇÃO –
A minha amiga Agatha Christie (1890-1976) é conhecida por haver “bulido” com venenos em seus romances. Acho que quase todos os fãs dela sabem disso. Por exemplo, em “The Pale Horse” (1961) foi o tálio; já em “The Mysterious Affair at Styles” (1920), a estricnina. Em “Lord Edgware Dies” (1933), um antigo e conhecido barbitúrico, o veronal; em “Sparkling Cyanide” (1944), o título já diz tudo. Já a cicuta, o veneno tomado por Sócrates (469-399 a.C.), está em “Five Little Pigs” (1942). Em “Dumb Witness” (1937), a toxina assassina é o fósforo. E talvez o mais famoso dos venenos, o arsênico, está em “After the Funeral” (1953).
E Christie não parou nos venenos. Andou “mexendo” com mais coisas perigosas. Os vírus, por exemplo, que, sabemos hoje mais do que nunca, são bichos deveras tinhosos.
Eu aqui anoto isso porque li, reli e vi “The Mirror Crack’d from Side to Side” (“A maldição do espelho”, 1962), um título que tem Miss Marple, a mais famosa detetive amadora da literatura, tomando conta da investigação. Adoro esse “whodunnit” da Rainha do Crime.
Em resumo, Marina Gregg é uma badalada atriz hollywoodiana. Ela tem um passado triste. Várias vezes casada, não conseguia ter filhos. Assim, adotou três crianças. Um dia, consegue engravidar. E ela basicamente abandona os filhos adotivos. Mas seu filho natural nasce com deficiência mental. Ela sofre um colapso nervoso. Já no presente da trama, Marina vem morar na Inglaterra, em Gossington Hall (a mesma mansão de “The Body in the Library”, de 1942, para quem não se lembra), antiga casa de Dolly Bantry, a amiga de Miss Marple. Há uma grande festa beneficente na mansão, durante a qual uma das pessoas presentes, Heather Badcock, é envenenada e morre (e podia faltar o veneninho de praxe?). Era Marina o verdadeiro alvo do assassino? Qual a razão do olhar petrificado da atriz durante a recepção, lembrando os versos famosos de Alfred Lord Tennyson (1809-1892)? Mais duas pessoas são assassinadas. Há um antigo acontecimento relacionado ao caso: um encontro entre Marina Gregg, grávida, e uma pessoa então infectada com o vírus da rubéola. Miss Marple, já em idade avançada, fisicamente ajudada com as informações, é a única mente capaz de desvendar “quem fez isso”. E paro aqui quanto ao fim da estória. Boca não diz mais palavra. In casu, teclado não faz mais spoiler.
Fico apenas com duas ou três observações interpretativas.
A primeira é que “The Mirror Crack’d from Side to Side” é um livro maravilhoso. Ele foi adaptado para o cinema e a televisão. Eu conheço três versões. O filme clássico de 1980, com Angela Lansbury como Miss Marple e com os astros Elizabeth Taylor, Kim Novak, Rock Hudson e Tony Curtis abrilhantando a trama. A série da BBC, “Miss Marple”, num episódio que vai ao ar em 1992, com Joan Hickson no papel de Jane Marple. E a série da ITV, já dos anos 2000, “Agatha Christie’s Marple”, com Julia McKenzie no papel da nossa querida detetive. As senhorinhas – Agatha Christie, a autora, e Miss Marple, a detetive – estão no auge nesse romance. Há muita vida na melhor idade. E devemos proteger e valorizar os nossos idosos.
A segunda é que o enredo do romance é parcialmente baseado na vida da atriz americana Gene Tierney (1920-1991), que, em 1943, grávida de sua primeira filha, teria contraído rubéola ao participar de um evento em Hollywood. A bebê assim desenvolveu rubéola congênita. Nasceu com problemas físicos e mentais. Findou internada em hospital psiquiátrico. Anos após, uma fã revelou à atriz haver então furado a quarentena da rubéola para encontrá-la no fatídico evento. Insano, para dizer o mínimo.
Por fim, anoto o que deveria ser o óbvio: os vírus existem; as pandemias, idem. Eles matam. E as pessoas e as celebridades/autoridades que não sabem lidar com eles ajudam muito nessa matança. Na ficção, como registrado acima. E na vida real, com gente espalhando e celebrando o vírus entre os nossos entes queridos, todos os dias, neste mui triste Brasil.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL