“NÃO, VOCÊ NÃO É NEGRA” –

Era uma vez uma mulher que ainda tem muito a aprender. Quase aos quarenta e cinco do segundo tempo, às portas dos meus cinquenta e dois anos, reconheço que tenho uma longa jornada de aprendizado sobre tudo que a vida nos apresenta cotidianamente, e um pouquinho mais.

De fato, não me descreveria uma pessoa desinformada, desantenada ou sem capacidade de construir meus próprios conceitos, fundamentos, critérios ou racionalidade ao ponto de alimentar intolerância e discriminação, gerando algum tipo de preconceito.

A forma como nos vemos nem sempre é aquela como somos vistos pelas outras pessoas, o que me leva a conjecturar pela ótica de outra pessoa: seria eu uma pessoa contaminada pelo preconceito estrutural racial (racismo), social (classismo), contra mulheres (machismo, misoginia ou sexismo), religioso, contra gordos (gordofobia), contra deficientes físicos (capacitismo), contra estrangeiros (xenofobia), LGBTIfobia (preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais) e tantos outros tipos de preconceitos? Exagero de minha parte?

Explico. Pasmo todas as vezes que me lembro de quando fui acusada, por mais de uma vez, pelas redes sociais e, vale salientar, pela mesma pessoa, de segregação racial e todos os seus sinônimos, adjetivos, por ser “branca, classe média, privilegiada, que não conhece a favela, não sofre nenhum tipo de preconceito e pactua com a branquitude”, o que poderia me levar a crer, caso eu realmente fosse preconceituosa, que estou condenada à impossibilidade de reconhecer o papel político de cada um de nós, sobretudo a luta e a resistência das mulheres negras.

Sim, tenho pleno conhecimento e consciência que boa parte de nossa fala, piada, escrita, gestos, atitudes e ações estão abarrotadas de expressões que revelam uma identidade socialmente construída sobre alicerces preconceituosos. Fato este enraizado na nossa sociedade, que, para romper com o paradigma, são fundamentais a autocrítica e o exercício diário de reflexão de todo o corpo social.

Ainda temos muito a avançar, crescer e evoluir quando falamos acerca de classismo, misoginia, machismo, sexismo, violência doméstica, gordofobia, capacitismo, xenofobia, LGBTIfobia e racismo. É, sem dúvida, um processo de amadurecimento da própria sociedade; ainda que ponderemos que nossas experiências são diferentes, é necessário que haja uma mudança nas estruturas cognitivas de cada indivíduo com base no respeito à individualidade e espaço de cada um de nós.

Onde estaríamos sem os movimentos sociais, sem as indignações, sem as dores que nos impulsionam em busca de justiça e igualdade, sem o enfrentamento social? De onde contemplo o lugar que quero para os meus pares não me cabem julgamentos, mas entendo que em alguns momentos é necessário, ao invés de bater, arrombar as portas e vice-versa.

Obrigada, querida professora e escritora Ana Catarina, por suscitar esta reflexão provocada pela breve conversa que tivemos dia desses, quando você me contou do constrangimento que sofreu, ao entrar numa loja de cosméticos, localizada num dos shoppings da nossa cidade, dirigindo-se à vendedora, em busca de um pó compacto para pele negra, no qual obteve a seguinte resposta da vendedora branca, mesmo diante de toda sua insistência em adquirir um pó compacto para pele negra:

– NÃO, VOCÊ NÃO É NEGRA, VOCÊ É PARDA.

Uma vez eu escutei do meu filho Matheus que eu nunca seria capaz de sentir a dor do preconceito racial pelo fato de não ser negra e não ter passado por uma situação desse tipo. Ele tem razão, EU NÃO SOU NEGRA, porém já senti na pele o peso de muitos preconceitos; sei bem sobre as dores e cicatrizes que carrego ao longo da minha vida, das violências domésticas que sofri, sei bem o que é esperar todos os dias os filhos voltarem para casa a salvos, sentindo-me aliviada por eles não terem sido vítimas da LGBTIfobia; sei bem o que é entrar em uma loja e a vendedora dizer que não tem nada que me caiba.

SIM, VOCÊ É NEGRA! EU SOU VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA! MEUS FILHOS LUTAM PELAS CAUSAS LGBTQIAPN+, E SIM, EU SOU GORDA!

Querida amiga, sua dor também é minha dor; afinal, somos mais fortes quando nos unimos, quando selamos nossa aliança em prol da luta pelos nossos direitos e espaços contra qualquer tipo de opressão e todas as formas de violência contra a mulher.

 

 

 

Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]

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