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Nas escolas, 900 mil brasileiros com mais de 40 anos buscam alfabetização e enfrentam preconceito

José Conceição, de 61 anos, foi aluno na EJA e atualmente cursa psicologia — Foto: Arquivo pessoal

O preconceito enfrentado por alunos com mais de 40 anos no ensino superior ficou evidente após o caso da universitária hostilizada por colegas em Bauru (SP) na última semana. Mas os obstáculos não param por aí.

Há 900 mil adultos e idosos, a partir dessa mesma idade, que estão matriculados em escolas no Brasil, sendo alfabetizados e aprendendo conceitos básicos de matemática e ciências.

Eles não chegaram à faculdade (ainda), mas já encontram severas barreiras para retomar os estudos: encaram a falta de autonomia por não saberem ler e escrever, são alvo de intolerância por tentarem estudar “tardiamente” e desdobram-se para conciliar o emprego com as aulas noturnas.

Olhe só estes números:

  • 35 milhões de brasileiros acima de 40 anos são analfabetos (segundo os dados mais recentes, de 2019, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Pnad),
  • cerca de 900 mil estão na escola (Censo Escolar de 2022);
  • e outros 600 mil são alunos no ensino superior (Censo de Educação Superior de 2021).

 

Nesta reportagem, o g1 foca no segundo grupo: o dos estudantes que estão na Educação Para Jovens e Adultos (EJA), modalidade de aulas voltadas a quem não concluiu os estudos na idade regular (não confunda com Encceja, que é a prova feita por quem quer o diploma do ensino fundamental ou do ensino médio).

O que aconteceu com as crianças e jovens, nas últimas décadas, para abandonarem o colégio ou nem chegarem a ser matriculados? O que motiva alguém com mais de 40 anos a enfrentar as dificuldades e entrar na EJA? E que desafios são esses?

Por que adultos chegam aos 40 anos sem ter concluído a escola?

Flávia da Silva, especialista em língua portuguesa e professora da rede pública de Goiás (inclusive da EJA), resume os motivos principais de abandono da escola:

  • histórias de extrema pobreza;
  • violência doméstica;
  • gravidez e casamento;
  • baixa autoestima gerada por problemas de aprendizagem não trabalhados ou identificados;
  • bullying na escola;
  • necessidade de trabalhar em período integral;
  • maridos que proibiam as esposas de irem ao colégio;
  • reprovações.

E há histórias em que os fatores se misturam.

Nascido em Pedrinhas (SE), o porteiro José Carlos Conceição, de 61 anos, não conhece as próprias origens – foi abandonado quando era criança e não se lembra de sua infância. Viveu na rua até os 16 anos, quando, ainda analfabeto, foi acolhido por um casal em Salvador.

“Comecei a lavar carro, a lavar panela em restaurante, mas sempre tive o sonho de estudar. Porque conhecimento supera qualquer riqueza de ordem material, né? Essas pessoas me disseram que o céu era o limite. Eu acreditei”, diz.

Foi com esse estímulo (e com a animação de ter conseguido ler gibis sozinho) que, durante a pandemia, José Carlos entrou na EJA, na modalidade à distância. Terminou os estudos, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021 e foi aprovado em psicologia.

“Trabalho de madrugada, saio da portaria e vou direto para a aula de manhã. Os moradores do condomínio mudaram o jeito de me olhar quando souberam que faço faculdade”, conta.

“Mas já ouvi muitas frases preconceituosas na vida. ‘Numa idade dessa, estudando? Para quê?’. Eu respondo: ‘porque eu quero; é proibido?'”

Não, não é proibido. É direito constitucional.

Quais os principais obstáculos?

  • Preconceito consigo mesmo ou vindo da família e dos amigos

“A primeira barreira a ser rompida pelos alunos da EJA é com eles mesmos. Existe uma autocensura que faz com que eles se questionem: ‘será que ainda adianta estudar nessa idade?’”, diz Sonia Couto, coordenadora no Instituto Paulo Freire.

Esse tipo de dúvida é alimentado por familiares e amigos. “Há mulheres que são privadas de seus direitos por maridos que não admitem chegar em casa e não encontrar a esposa servindo o jantar, ‘só’ porque ela está na escola à noite”, afirma. “E existem casos de filhos que ficam envergonhados de ter pais na EJA.”

Às vezes, o preconceito aparece de uma maneira mais velada, disfarçada de brincadeira.

“Isso sempre vai acompanhar quem não está no padrão. Tenho uma aluna [na EJA] que tem mais de 70 anos. As mais novas perguntam para ela o que ela espera do futuro nessa idade. Percebe-se um tom jocoso [de “zombaria”] nas falas”, conta Flávia.

  • Cansaço ao ter de conciliar as aulas e o trabalho

 

As aulas da EJA costumam acontecer à noite. Em São Paulo (SP), por exemplo, são ministradas das 19h às 23h, em escolas municipais.

Não é fácil, para um trabalhador, ter disposição e encarar 4 horas de conteúdos, após um expediente exaustivo.

“Eles chegam cansados, com fome. E a pandemia provocou um estrago: alguns idosos que tiveram Covid-19 enfrentam ainda sequelas da doença, com problemas de memória e concentração. É preciso considerar tudo isso na hora de planejar uma aula”, diz Sonia Couto.

  • Infantilização do ensino e perda de interesse pelo curso

É necessário ter cuidado ao oferecer os conteúdos para adultos e idosos na EJA. Não é porque estão aprendendo a ler que se sentirão à vontade com os mesmos materiais didáticos usados por crianças de 6 anos.

“Se o aluno recebe uma atividade com coelhinho da Páscoa, vai se sentir infantilizado. Aos poucos, todo o esforço para estudar vai se desmobilizando”, explica Sonia. “Cabe aos professores pensarem em maneiras eficientes de ensinar o conteúdo, sempre valorizando os saberes da turma.”

A “pedagogia do afeto”, do educador Paulo Freire (1921-1997), costuma orientar os docentes nesse desafio: a relação professor-aluno é um diálogo aberto, com empatia e constantes trocas de conhecimento.

Para uma aprendizagem efetiva, um professor que recebe os alunos nas salas de aula não deve se atentar somente a cumprir currículos, e sim a praticar a afetividade e a “abrir a porta” para a conversa.

“Precisa conhecer a realidade das pessoas que estão na sala. Qual é o contexto de vida delas? Quais são as necessidades e expectativas?”, diz Rosana Helena Nunes, pós-doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Em vez de tomar como base “frases feitas” de apostilas, como “o bebê babou”, o educador baseia-se no vocabulário do dia a dia do trabalhador: “cana”, “enxada”, “terra” e “colheita”, no caso de uma turma de agricultores.

Por que procuram a escola?

O número de alunos da Educação Para Jovens e Adultos vem aumentando nos últimos anos: saltou de 728.429, em 2012, para 900.222, em 2022, segundo o Censo Escolar, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

As hipóteses para esse aumento são, segundo os especialistas ouvidos pelo g1, as seguintes:

  • busca por maior independência (até para tarefas do dia a dia, como pegar um ônibus sozinho ou escrever o próprio nome);
  • conscientização de que precisam ocupar outros espaços além do de dona de casa ou de trabalhador explorado;
  • sonho com progressão de carreira;
  • ganho de autoestima;
  • liberdade de buscar a própria formação, depois de ter cumprido a “missão” de educar os próprios filhos.

Lucineide Ferreira, de 56 anos, parou de estudar na 3ª série do ensino fundamental, quando tinha 17 anos. “Eu morava no sertão do Ceará, então, o caminho era trabalhar na roça mesmo. Me casei, tive filhos e não voltei para a escola. Só agora que enxergo tudo o que ficou perdido para trás”, diz.

Aluna da EJA, ela sonha em aprender a ler e a escrever. “Enquanto eu estiver com saúde, vou continuar estudando. Quem sabe fazer o colegial? [antigo termo para ‘ensino médio’]

Para Sonia, do Instituto Paulo Freire, “são pessoas que querem completar um vazio”.

“O estudo, para elas, é mais do que a aprendizagem da leitura e da escrita. É uma mudança, uma possibilidade de esperança, de liberdade para transitar por uma cultura letrada.”

Fonte: G1

Ponto de Vista

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