NOITES COM SOL –
Deixei a casa onde passei os últimos tempos de um ciclo meu. Meses felizes. Conheci um estilo de vida quase inimaginável em São Paulo, me espalhei em novos ambientes, ganhei novos amigos – inclusive o danado do gato mimoso – e saí trôpego de saudade.
Resolvi passar aquele meu último dia do resto de minha vida no hotel da região da Paulista em que sou recebido como gente de casa. Não havia opção melhor diante de algumas coisas derradeiras por resolver antes da viagem. Ainda mais com aquele acolhimento terno. Sim, terno, algo que também parece quase impossível numa metrópole daquele tamanho, quase sempre desenhada pelos contornos do estresse coletivo.
O trânsito estava calmo apesar da garoa do meio de tarde cinzenta. E o velho taxista garantiu a costumeira prosa boa no trajeto até o aeroporto. Na antessala de embarque de um grupo de companhias aéreas fomos obrigados a dividir o ambiente com um deputado federal denunciado por corrupção – quase redundância da política nacional.
Ele andava de um lado para o outro preso ao celular. Sim, o (nosso) dinheiro público servindo para bancar o telefone que nunca desliga. E, como vimos logo em seguida, também um bilhete de primeira classe para aquele um. Que certamente terá volta.
Algumas horas depois entrei no finger e vi de relance o nome de batismo do meu avião pintado na fuselagem: “Pedro Álvares Cabral”. Eu estava partindo para algumas aventuras que vinha planejando há muito tempo e aquilo me pareceu um encanto do destino, um sinal para as minhas descobertas pessoais. Dessas coincidências que podem não ter qualquer valor visível, mas soam boas por algum motivo extrassensorial.
O tradicional acolhimento dos portugueses se fez sentir ao primeiro contato. Assim que o avião estabilizou, chegou o cardápio que deu início ao serviço de bordo. Em alguns átimos revi a nossa Varig nos melhores momentos – que marcou época ao redor do mundo com seu padrão impecável, com uma cozinha cantada em verso e prosa e que provoca suspiros saudosistas até hoje.
Depois da noite de sono reconfortante, o magnífico nascer do sol sobre África e Europa informava que há algo maior além daquela visão janela de avião, muito acima de nós!
Descer no Porto foi poder rever do alto uma terra que adorei desde que conheci, anos antes. Agora, era apenas uma rápida passagem. O carro deslizou veloz em direção a Braga, que escolhi meio que por escolher, sem entender direito por quê.
A cidade linda, histórica, a mais antiga de Portugal, fundada pelos romanos há mais de dois mil anos como Bracara Augusta. Era outro lugar que estava revendo, agora com muito mais tempo.
Rodei a chave e entrei num lugar onde precisei desmentir minha certeza de que já conhecia. Foi como movimentar a porta de um saloon do Velho Oeste americano, oscilando no vaivém o passado deixado naquela viagem longa e o futuro que combinei comigo às escuras.
Entrei num mundo encantado de histórias de viagens, de acolhimento, de doação, de vida, de encontros humanos, de coisas que parecem não existir mais. Mas estavam flutuando ali, como a solidão dos peregrinos que vira força descomunal para chegar ao destino.
Um trem ligeiro até Lisboa com Portugal passando pela janela, o fim de semana entre amigos queridos em visita ao país. Andar a pé em algazarra por lugares que estavam guardados na saudade, passear de tuk tuk até a hora do almoço n’O Magano. Cozinha alentejana, canto escondido da cidade em Campo de Ourique, (ainda) fora do circuito dos turistas – tesouro descoberto por um amigo querido que conhece aquilo tudo pelo coração. A comida espetacular, vinhos que se derramaram nas taças como que caídos do céu dos vinhos.
A festa de noite, o Solar dos Presuntos como cenário para os aniversários comemorados, o prazer da cozinha minhota e de rever Agostinho, Miguel e conhecer Felipe, craques na arte de receber e servir com alegria e gracejos, característica da casa famosa.
Amanhecer o domingo com a ansiedade da saudade prévia dos amigos que iriam de volta para casa, uma lágrima bem disfarçada na voz firme do “até breve”, uma última foto no ônibus que os levou ao aeroporto.
Antes do meu trem noturno, tempo de sobra para o grande prazer de descer a pé até o Terreiro do Paço e, diante do Tejo, imaginar as grandes navegações portuguesas. Um domingo em que a famosa luz de Lisboa estava primorosa para iluminar minhas fotos, meus sonhos e o futuro que batia no coração. Como se fosse pouco, o sagrado direito de ir e vir sem incômodos, sem medos, sem violência urbana sufocante.
Depois das duas da tarde, a subida sem pressa da avenida da Liberdade e a entrega ao prazer do bacalhau, no Ribadouro instalado desde 1947 em belíssimo prédio de fachada curva com tempero de História.
O desembarque na estação gelada, a vontade de chegar em casa e cruzar de novo a porta de saloon, passar a limpo os rascunhos emocionais. Os dias seguintes de caminhadas pelos sítios históricos, a oração na extraordinária Sé de Braga, o bacalhau no Inácio, o café de saco com tostas n’A Brasileira – tradição desde 1907 –, a procura por um chapéu que não está em loja nenhuma, o frio que não dá trégua – às vezes com chuva fina que pede o tal chapéu.
A visita à Freguesia de Apúlia para um almoço – indispensável caso a temporada de sardinhas seja generosa. Bobagem se não houver sardinhas, não faltarão outros sabores inesquecíveis do mar. Segredos da pequena reserva de pescadores e sargaceiros que se estende diante do Atlântico.
A descoberta do prazer de esperar a hora chegando para a conversa parelha, intensa, de olho brilhando, como criaturas da noite em voo calmo, procurando luz onde secar tanto sereno. Indo pela noite avançada, desenhando sonhos, virando madrugada, precisando ser parada porque há sempre dia seguinte. Talvez a tradução de Noites com sol:
Ouvi dizer que são milagres
Noites com sol
Mas, hoje eu sei, não são miragens
Noites com sol
Posso entender o que diz a rosa
Ao rouxinol
Peço um amor que me conceda
Noites com sol
Onde só tem o breu
Vem me trazer o sol
Vem me trazer amor
Pode abrir a janela
Noites com sol e neblina
Deixa rolar nas retinas
Deixa entrar o sol
Livre será se não te prendem
Constelações
Então verás que não se vendem
Ilusões
Vem que eu estou tão só
Vamos fazer amor
Vem me trazer o sol
Vem me livrar do abandono
Meu coração não tem dono
Vem me aquecer nesse outono
Deixa o sol entrar
Pode abrir a janela
Noites com sol são mais belas
Certas canções são eternas
Deixa o sol entrar
A calma dos dias, o silêncio reinante, as senhoras donas das casas estendendo suas roupas nas varandas iluminadas pelo sol que tenta brigar com o frio, os carros parando absolutamente respeitosos em todas as faixas de pedestres, a cortesia das pessoas atrás dos balcões, os preços justos, a vida passando boa…
A noite de novo, a incrível experiência de cruzar com um estranho encapuzado pelo frio na rua deserta e não sentir medo. De repente, o susto com um vulto se aproximando, o olhar para trás de supetão e o dar de cara somente com o poste de iluminação. Imóvel, como seria óbvio. Apenas uma luz acesa das noites com sol, que fez de vulto minha própria sombra em movimento. Nada além do que a traição do reflexo condicionado pela minha violência urbana acumulada.
A sensação de ar fresco de volta à vida, as janelas abertas para ele correr livre e solto (mesmo não deixando dormir, carregando para a noite alta). Eu começava a enxergar o destino na escolha do destino. Eu começava a sentir a vontade de ficar. Eu começava a sentir.
Texto (co)incidental:
Noites com sol (Flávio Venturini-Ronaldo Bastos)
Heraldo Palmeira – Produtor Cultural
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